A frontalidade real e mágica de Miguel dos Santos
Diego Matos
As artes moderna e contemporânea brasileiras sempre estiveram além do espelho das tradições e caminhos da arte ocidental: é composta por uma estrutura tão complexa de atravessamento de tempos e fenômenos culturais que transcendem as classificações majoritárias estabelecidas pelo mercado e o circuito institucional. Não se trata aqui de nomear descobertas, mas de se alicerçar novas miradas, capazes de reconhecer a riqueza formal de outros gestos criativos, repertórios e signos anteriormente obliterados do ambiente internacional. A obra de Miguel dos Santos (Caruaru, Pernambuco, 1944) povoa, com certeza, essa complexa e estruturada paisagem artística do Brasil. Ao erguermos o nosso olhar diante dos seus trabalhos, descobrimos uma percepção poética acurada da riqueza fabular do Nordeste.
Sem a pretensão de desenvolver grandes digressões históricas, nos parece salutar, entretanto, reconhecer a força da região Nordeste brasileira, área primeira a ser desbravada pelos caminhos e descaminhos da colonização. Ela representa, ao mesmo tempo — tanto em termos físicos como socioeconômicos —, os lugares de origem e morada do artista, especialmente o trecho a leste voltado para a nascente, do litoral ao interior, da Zona da Mata ou Sertão. É nesse ambiente de paisagem transicional, de transformação e resistência, de gestão forçosa de um projeto de nação, que a sua obra ganha presença e contexto. Ambiente onde a existência indígena ancestral encontrou a presença exploratória e cultural europeia e a presença, pela escravidão, de uma população africana — início de um turbilhão sociocultural afro-atlântico e lusófono. Ao longo de mais de dois séculos, não sem violência, nos foi herdado no século XX um espaço de disputa e construção de uma outra modernidade — sob a qual o trabalho do artista pernambucano-paraibano se instaura.
Não se trata de evocar seu trabalho como consequência de uma geografia, mas sim identificar uma clara consciência de contexto. Como bem pontua a sua fortuna crítica, Miguel dos Santos foi capaz de unir projetos civilizacionais distintos em sua obra. Notadamente, a conjugação de uma ancestralidade africana aliada aos movimentos de força da arte moderna europeia, em especial o cubismo.
Dito isso, é de suma importância apontar o contexto de formação do artista, no qual se destaca a sua proximidade ao Movimento Armorial.[1] Dele fizeram parte personagens importantes como Ariano Suassuna (1927-2014), Francisco Brennand (1927-2019) e Gilvan Samico (1928-2013). Como o próprio Suassuna (o pensador e escritor do grupo) pontuou: Miguel é o que melhor engendrou, por meio do fantástico de suas imagens e formas, o contato com o Brasil real e nu, distante da forjada polidez modernista tal qual a conhecemos. Esses anos de formação e juventude e a sua troca com o movimento Armorial, lançaram, então, as bases de uma vasta produção que se estende por mais de 50 anos: uma vida em desenhos e pinturas, cerâmica e escultura. Estabelecendo o seu monumental ateliê em João Pessoa, longe do circuito de arte estabelecido das capitais financeiras e culturais, desenvolveu na pintura e na escultura em cerâmica uma clareza formal e temática de grande originalidade, que esta seleção de obras busca mostrar ao público internacional.
Em amplitude, é bom que se diga que o artista em momento algum foi integrado às construções hegemônicas da arte brasileira. Ao contrário de seus colegas geracionais que beberam da fonte construtiva da arte ou da força expressiva da abstração, Miguel tem em sua trajetória um apreço pelo que vem intrinsecamente da terra e da sabedoria popular — essa advinda especialmente da literatura poética e do cancioneiro interiorano.
Para exemplificar, vale olhar atentamente a sua produção em cerâmica. Pode-se dizer que as obras desse gênero aqui selecionadas se situam entre a artesania popular dos utensílios e objetos das feiras e mercados locais e as elaborações de um pensamento escultórico claramente erudito, conforme pontuou o crítico Antonio Bento, na virada para a década de 1970. Ao longo dos anos, as cerâmicas moldadas e pintadas foram ganhando em escala e complexidade compositiva. Neste projeto capitaneado pela Galatea para a feira Independent 20th Century, o recorte histórico de 28 trabalhos entre a cerâmica e a pintura remonta ao final dos anos 1960 e percorre com consistência duas décadas fundamentais de sua trajetória, os anos 1970 e 1980.
Na obra de Miguel dos Santos não há nem um gestual límpido e especulativo, nem uma disposição para um processo mais racional e mecânico que atenda à lógica do capital. O que há é uma especulação figurativa intencionalmente estruturada e recorrente, sensual e calorosa, que se combina a todo um rigor formal, inclusive em termos discursivos. É imperativo sublinhar, ainda, os fortes traços da cultura afro-brasileira; o que, em perspectiva, envolve uma tomada de consciência do próprio artista para com sua percepção intuitiva da ideia de origem gravada no corpo, em sua formação e no seu habitus, como bem definiu o filósofo francês Pierre Bourdieu.
Em 1960, ainda muito jovem, foi morar em João Pessoa (PB), uma das capitais do nordeste que se estabeleceram na segunda metade do século XX. Ali, constituiu uma dimensão política e pública para a sua obra, que em escala ganhou corpo e chegou à dimensão urbana nas décadas subsequentes. Em 1969, com coordenação do crítico Walmir Ayala, realiza a sua primeira individual no Rio de Janeiro, exibindo pinturas e cerâmicas na Galeria Celina. Em 1976, a convite de Pietro Maria Bardi, historiador e crítico italiano radicado no Brasil que fundou o Museu de Arte de São Paulo — MASP, realiza uma grande individual na instituição. Esse fato marca a entrada da sua obra nos museus, além de selar a sua amizade com Bardi, que se desenvolveu em correspondências e inúmeras colaborações nos anos seguintes. A exposição, diga-se de passagem, ocorre na então nova sede do MASP, concebida pela arquiteta Lina Bo Bardi — que renovou a noção de expografia com os seus famosos cavaletes. Como o próprio artista costuma dizer, aquele foi um momento de duplo impacto: a vivência do ambiente de uma cidade que se transformava em metrópole e a construção de um reconhecimento no circuito artístico nacional.
Outro ponto de inflexão é sua ida ao Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana, o FESTAC ‘77, realizado em Lagos, Nigéria. Em certo sentido, esse encontro com o contexto do outro lado do Atlântico fez com que ele estabelecesse uma relação ainda mais profunda com sua afrodescendência, entendendo institivamente e espiritualmente qual seria o caminho a ser trilhado. O reconhecimento aprofundado dessa ancestralidade preta selou de forma permanente a influência do repertório iconográfico africano no seu trabalho. Para tanto, basta rememorar a simbologia dos Orixás afro-brasileiros que impregnam muitas das figurações do artista.
É bom lembrar que foi nesse mesmo festival que duas figuras incontornáveis da cultura afro-brasileira ganharam também destaque. Em primeiro lugar, lembramos a fala histórica de Abdias do Nascimento, um dos maiores pensadores e artistas negros da história brasileira. Na ocasião, ele se posicionou de forma cristalina contra o racismo de face dissimulada e atrelado aos processos coloniais no Brasil. Em segundo, Gilberto Gil, um dos mais importantes compositores da música popular brasileira, se viu diante de um caminho sem volta: a racialização política de sua arte, nascendo então seu célebre disco Refavela (1977).
Pode-se perceber, assim, que sob a curadoria do crítico Clarival do Prado Valladares, Miguel dos Santos fez parte de um grupo excepcional escolhido para representar o Brasil na ocasião. O artista esteve na proa de uma nova força artística brasileira em destaque, ainda nos anos da perversa ditadura militar no país. É de suma importância trazermos para o debate atual a ressignificação daquele momento da história, algo que se espelha na expressão simbólica e formal da obra do artista.
Na seleção de obras para este projeto, pode-se perceber a aglutinação de um universo de animais, bichos alados, seres fantásticos e pescoçudos, alguns em conexão com a condição humana, outros com a ordem espiritual e religiosa. Muitas delas prezam por uma frontalidade na representação, algo que perdura desde a tradição clássica da arte. Conjuntamente, é perceptível um movimento de erguimento e força, seja como um sentido de presença, proteção, observação ou ataque. Se nos debruçarmos atentamente para a observação de suas pinturas, percebemos formas que gravam uma verticalidade e uma frontalidade de corpos. Há essa comunhão plástica em bidimensionais como Escravo da Imaginação (1980), Purusha II (1981), o tríptico Amazônico (1986) e A dança (1980).
Tal força vertical de erguimento já se insinuava em obras do início dos anos 1970, a exemplo da pintura Duende (1972). Tal característica reverbera de maneira eloquente nos vários personagens e seres que nascem da fusão do real com o fantástico: Retrato de Samico (1983), A grande Alma (1984), Paulo Queiroz (1976) são alguns dos exemplos. Entretanto, se não são necessariamente frontais, as pinturas prezam ao menos pela força da presença vertical, abolindo uma paisagem exterior perspectivada. Em todas elas, as cores quentes e terrosas se sobressaem, mesmo que algumas sejam abraçadas por um entorno mais escuro, quase noturno e onírico.
Esse eixo vertical e central destacado comparece também nos seres moldados em cerâmica. São seres que por vezes nos abraçam ou nos repelem, em um gesto permanente de uma vontade de contato, um ponto de alcance com a realidade. De modo geral, há um claro equilíbrio constituído, que em alguns momentos se revela simétrico e estruturado hierarquicamente. Quanto às cerâmicas que guardam essas características, chamamos a atenção para o conjunto de Mães e Chicos, assim como também para os Vulcanos.
Há em todas essas peças uma viva ancoragem na terra, definindo-se uma postura frontal e um movimento possível de erguimento e ascensão. Por certo, há também os bichos que se postam em movimento, indicando a presença do que parecem ser asas, sendo a posição das figuras mais lateral nas pinturas: Bacaro (1975), Biquiba (1971), César (1975) e Construtor (1981). Se nosso olhar é cruzado com parte desses seres que nos olham, em outros a vista é dada pela observação de um movimento que o bicho parece engendrar.
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O corpo de trabalhos ora apresentados amalgama o que seu amigo e interlocutor Suassuna diria acerca da produção do artista: “[uma obra] tão expressiva da visão tragicamente fatalista, cruelmente alegre e miticamente verdadeira que o povo brasileiro tem do real”. Se há uma íntima e visceral relação de seu imaginário poético com o campo imaterial cotidiano e popular de uma dada região, há também o espelhamento de uma identidade mais complexa de um Brasil rural e urbano, arcaico e contemporâneo. Essa produção artística é resultante de uma prática material alicerçada numa manualidade e numa ordem compositiva que, de certa maneira, possui reverberação universal. Flertando constantemente com esse enorme abismo poético capaz de transcender um imaginário local é que o artista promove uma espécie de “baile à beira do abismo”, conforme ele mesmo pontuou em poema de sua autoria.
Em última instância, Miguel Domingos dos Santos é um tradutor efetivo da tradição sincrética africana-católica-indígena brasileira que, no entanto, não deixa de lado a crueza vívida dessa ordem, o que pode ser trágico e alegre em um só tempo. De acordo com o que nosso maior crítico em atividade, Frederico Morais, certa vez escreveu: diante do bestiário fabulado pelo artista em pintura e cerâmica, é como se os movimentos e alongamentos de pescoço desses seres inventados fossem uma afronta, uma espécie de resistência impositiva ou o anúncio de uma presença a ser considerada. É como se estivessem sabiamente “querendo devorar o infinito com gulas cósmicas”. Em vista disso, sejam todos bem-vindos à frontalidade mágica e real do abismo poético de Miguel dos Santos.
[1] Movimento batizado pelo escritor Ariano Suassuna que buscou formas de experimentar com uma tradição pré-histórica local e com a força da expressão literária do cordel, nos espetáculos teatrais e musicais, na xilogravura. Os romanceiros populares são a epítome dessa produção. De modo geral, era necessário que os artistas estivessem sempre atentos à vitalidade da produção cultural popular, convergindo nos vários gêneros da arte (literatura, música, pintura, escultura, teatro e dança).
[1] Versos do poema “Entre Séculos”, produzido pelo artista em junho de 2000, na ocasião da coletiva Entre Séculos, na Galeria Tina Zappoli, em Porto Alegre, Brasil.