Dani Cavalier: pinturas sólidas
Tecer o próprio destino
Isabel Carvalho
Ato 1: Abertura oracular
“Quando acordamos de manhã, somos inspirados a fazer alguma coisa e a fazemos.”
— Agnes Martin[1]
Sabemos que cada artista tem seu próprio ritual ou hábito que integra o cotidiano da criação. Seja ao inventar um ambiente que favoreça a conexão com aquilo em que acredita, seja ao simplesmente permanecer em quietude até que algo se revele e o trabalho se materialize nas suas mãos.
Em seu ritual diário, firmado pela cigana Sara e Maria Conga D'angola, Dani Cavalier acende velas, coloca uma playlist e acessa seus oráculos: um livro da artista canadense Agnes Martin e o chão do ateliê. Para ela, o processo acontece quando se atinge um estado de presença em que o trabalho, embora carregado de conceitos, se desenvolve de forma inconsciente. O chão inteiro está coberto por acúmulos de tecido colorido e, por isso, o acesso é realizado com os pés descalços. O tecido, por sua vez, não é qualquer um, mas a lycra. Ela é elástica, sintética e resistente. Para a artista, a escolha de cada pedaço que compõe a obra é como um lance de dados — é o acaso que decide seu lugar na composição.
Este texto está dividido em atos que chamei de “oraculares”. Cada ato trará uma abordagem relacionada aos caminhos delineados pelo trabalho da artista, com suas referências, questões, escolhas e revelações. As revelações surgem como um guia (ou oráculo) para compreendermos a elaboração de sua obra e a pesquisa em torno das Pinturas sólidas. Desse modo, cada ato oracular será aberto por uma frase escrita por Agnes Martin que, de certa forma, antevê a discussão proposta.
Ato 2: O ateliê da tia
“Não pense que ela [a inspiração] é reservada para poucos ou algo assim.”
— Agnes Martin
Em muitas culturas, há uma associação histórica entre as mulheres e as práticas têxteis. Em alguns contextos, essa ligação abrange todas as etapas da produção — da semeadura e tosquia à confecção da peça final. Trata-se de uma relação ancestral que, dependendo da classe social, assumiu diferentes significados: para as mulheres das elites, muitas vezes foi usada como instrumento de domesticação; para aquelas em condições menos privilegiadas, tornou-se uma estratégia de sobrevivência.
Apesar disso, é importante considerar como o estereótipo que associa mulheres aos trabalhos manuais tidos como “inferiores” ou “decorativos” contribui para reduzir suas produções a algo “eternamente feminino”.[2] Essa visão homogeneizante apaga as variações, as invenções e os contextos específicos em que essas mulheres atuam. Na construção da história da arte hegemônica — moldada por homens ao longo dos séculos — esse enquadramento promove uma desqualificação sistemática do trabalho feito por mulheres, por meio da padronização de seus processos criativos. Soma-se a isso a imposição de hierarquias que relegam à inferioridade tudo aquilo que escapa ao lugar consagrado das belas artes.
Como essa construção impactou e impacta as mulheres que se dedicam às práticas manuais até hoje?
Em uma de nossas conversas, Dani Cavalier revelou que o seu interesse pelas áreas criativas foi despertado desde a infância a partir do contato com o que ela nomeou de “ateliês mascarados”, ou seja, espaços que frequentava assiduamente e que, por serem ocupados por mulheres, seriam considerados não-artísticos. Embora inconscientemente fosse influenciada pelo processo criativo de sua tia, que fazia decorações de festas em seu ateliê na Ilha do Governador no Rio de Janeiro,[3] ela compreendeu a partir do ambiente familiar que o trabalho das mulheres estava relacionado a um processo de apagamento e desvalorização do conhecimento técnico não alcançado através dos estudos da história da arte.
Com o desejo de construir uma nova realidade para si e para todas as mulheres, a artista compreendeu que ela também poderia fazer algo para além do ateliê mascarado da sua infância, considerando o potencial transformador e político do têxtil. Em relação às mulheres e ao têxtil envolvidos na resistência política, Julia Bryan-Wilson destaca o exemplo das sufragistas que confeccionavam as bandeiras com costura e bordado para sair às ruas e exigir seus direitos durante o século 19. A partir da leitura de Rozsika Parker, a autora destaca a relação matrilinear do têxtil como um lugar de produção de “conhecimentos que podem ser utilizados para propósitos alternativos”.[4] Se por um lado as mulheres foram educadas para o ideal feminino, por outro, esse conhecimento também se tornou uma arma de resistência.
Ato 3: Biquínis
“Quando seus olhos estão abertos você vê beleza em qualquer coisa.”
— Agnes Martin
Paralelamente aos estudos de arte contemporânea, Cavalier iniciou um projeto de produção de biquínis em 2015 com a marca Aro. Seria um primeiro contato com a materialidade que culminaria no desenvolvimento das questões presentes em suas Pinturas sólidas. A sua trajetória está centrada em dois aspectos que envolvem a história das mulheres e as estruturas sexistas que compõem a nossa sociedade até hoje. Primeiramente, há o questionamento a respeito da invisibilidade do trabalho manual e, depois, a necessidade de elaborar um ato político a partir da vestimenta. Desse modo, as peças de biquíni feitas em lycra carregam em si não apenas a memória material — a lycra foi criada no final da década de 1950 para substituir a borracha utilizada nas cintas modeladoras femininas —, mas a compressão dos corpos femininos dentro de padrões de beleza. Segundo a artista, o biquíni é “o único setor da vestimenta que a gente escolhe para nosso bel-prazer”.
Partindo da necessidade de dialogar com as mulheres de forma mais direta, abordando ao mesmo tempo a manualidade dos processos e a possibilidade de autonomia feminina, a artista criou a obra Biquíni.pdf. No manifesto publicado em 6 de novembro de 2023, Dani Cavalier aponta “o resgate da autonomia” disponibilizando um arquivo com o molde de um biquíni “que pode ser impresso em qualquer impressora A4” e executado a partir de instruções e sem costuras. Sugere, ainda, uma conexão com os Parangolés de Hélio Oiticica, em que o ato de vestir pelo espectador ativa a obra e o torna cocriador. Trata-se, portanto, de uma experiência que reelabora a nossa relação com o consumo e com a criação da arte.
A artista também organizou encontros, chamados por ela de “facções”, em que as participantes se reuniam em seu ateliê para criar o biquíni. Não era preciso grandes habilidades de costura, nem de modelagem, apenas um anseio de repensar o seu lugar no processo de criação e no destino de suas vidas. Um trabalho que pode ser comparado aos vídeos de tutoriais disponíveis em plataformas online que ensinam práticas têxteis ou outras formas de produção manual. Um processo colaborativo que estimula a autonomia e o conhecimento de técnicas que muitas vezes eram transmitidas de mãe para filha.
Nas concepções gerais sobre a conexão entre as mulheres e o manual, como na prática têxtil abordada anteriormente, desconsidera-se muitas vezes o prazer envolvido nos gestos e nos encontros entre mulheres. De acordo com Lucy Lippard, nas últimas décadas temos visto um movimento de retomada das “atividades de nossas mães, tias e avós — não apenas nas áreas amplamente divulgadas de colchas e tecidos, mas também na área mais aleatória e livre da reabilitação transformacional.”[5]
Muitas dessas práticas envolvem a reutilização de materiais considerados sobras ou lixo, que Miriam Schapiro e Melissa Meyer chamaram de femmage. No processo, há uma “reconstrução arqueológica” por suas criadoras, em que os “materiais coletados, guardados e combinados representavam para essas mulheres atos de orgulho, desespero e necessidade. A sobrevivência espiritual dependia da preservação de memórias”.[6] Para as autoras, cada pedaço de tecido, conta ou botão reaproveitado era um lembrete da vida daquela mulher (onde ela viveu, em que época, o que ela sentia etc.).
As mulheres utilizam restos e sobras como linguagem há muitos anos, mas essa prática continua sendo ignorada como forma legítima de arte. Como resultado, grande parte do que foi produzido dessa maneira se perdeu — enquanto muitas das chamadas “descobertas” da arte moderna, como a colagem, por exemplo, seguem sendo exaltadas na contemporaneidade como gestos de genialidade masculina. Um exemplo interessante e que hoje está recebendo, de forma tardia, valorização artística, é o trabalho de Madalena dos Santos Reinbolt. Em sua prática, ela “utilizava materiais descartados pelas pessoas que viviam nas casas em que trabalhava, valendo-se de retalhos, sobras e restos.”[7] No seu caso, a falta de acesso aos materiais convencionais para a produção artística (tintas, telas, pincéis) a impulsionou a criar quadros de lã de modo a dar vazão à sua necessidade criativa. Além de inovadoras, as obras de Reinbolt, assim como as de tantas outras mulheres que reaproveitam materiais, dialogam com a sustentabilidade, tema tão importante na contemporaneidade.
As Pinturas sólidas de Dani Cavalier podem ser inscritas nessa mesma linhagem, uma vez que a lycra que as constitui advém das sobras da indústria têxtil. Por meio da sua prática, esses resíduos passam a ocupar um lugar de valor no campo das artes visuais. Dessa forma, as obras de Cavalier preenchem as fissuras de uma história que, ao longo do tempo, privilegiou a criação dos homens para os homens, sob um olhar que tutela o corpo feminino e que reduz a produção das mulheres a meros objetos descartáveis.
Ato 4: Pinturas sólidas
“Há o trabalho em nossas mentes, o trabalho em nossas mãos e o trabalho como resultado.”
— Agnes Martin
Muitas foram as tentativas de se repensar a pintura tradicional e uma delas foi a abstração. Apesar de existirem questionamentos a respeito da sua “invenção”, não será o caso de discorrer sobre isso detalhadamente aqui. No entanto, prevalece o consenso na história da arte hegemônica de que foram certos pintores homens os pioneiros dessa nova linguagem, entre eles Wassily Kandinsky. Não é de hoje que se sabe, contudo, que pintoras mulheres experimentavam a linguagem abstrata no mesmo período, como a artista sueca Hilma af Klint. Embora não seja possível bater o martelo a respeito da origem da arte abstrata, a história da arte modernista tratou de ocultar os feitos femininos e privilegiar as figuras masculinas. Portanto, a abstração durante muito tempo foi vista como uma linguagem desenvolvida por homens.
Algo semelhante ocorreu no contexto do expressionismo abstrato que, embora composto por diversas artistas mulheres, tais como como Lee Krasner, Elaine de Kooning, Joan Mitchell e Helen Frankenthaler, foi propagado enquanto uma corrente artística predominantemente masculina, destacando nomes como Pollock, Rothko, Neumann etc. Segundo Gwen Chanzit, curadora da exposição Women of Abstract Expressionism que ocorreu no Denver Art Museum em 2016, “o heroico espírito machista tornou-se uma característica definidora das pinturas expansivas e gestuais do expressionismo abstrato”[8]. Por outro lado, no concretismo, neoconcretismo e outros movimentos da abstração pós-segunda guerra, sobretudo na América Latina, nomes de mulheres passaram a ganhar relevância, como Lygia Clark e Lygia Pape. Nos anos 1970, o movimento feminista das artes também questionou o lugar da mulher na abstração, tanto em relação à pintura quanto nas obras minimalistas: rejeitar o minimalismo, por exemplo, estava em pauta na prática feminista da época. “Representava, para nós, participantes do que era chamado de ‘movimento das mulheres na arte’, a rejeição de um tipo de opressão intelectual que sentíamos que não nos aceitava nem nos dava a chance de nos expressarmos”, disse Linda Nochlin.[9]
Para Dani Cavalier, a pintura ainda é baseada em “estruturas masculinas” e, consequentemente, há uma desvalorização das mulheres dentro do mercado. Em 2023, o relatório da Artsy apontou as desigualdades de gênero a partir dos leilões realizados em 2022, em que mulheres representaram apenas 9% das vendas. No relatório publicado em 2024,[10] focado apenas nos dados da própria Artsy, o panorama geral aponta que 71% das buscas na plataforma realizadas no ano anterior foram de obras de homens, 25% de mulheres e 4% de artistas não binários, coletivos e sem especificação de gênero. O relatório destaca que, apesar de uma melhora nas buscas em torno do trabalho de mulheres, a maior valorização de artistas homens ainda persiste.
Diante disso, Cavalier propõe, como ela mesma define, “um debate dentro da plástica” ao transformar a prática têxtil e a pintura em um espaço de reflexão sobre o sexismo na história da arte. É nessa direção que inicia as suas primeiras Pinturas sólidas drapeando e grampeando as lycras. Uma Pintura sólida é, portanto, uma linguagem e técnica criada pela artista que não nega a pintura nem a abstração, mas propõe uma nova forma de compreender e resistir às problemáticas que ela identifica. Na série As pensadoras (2025), composta por obras monocromáticas, Cavalier demarca o lugar da mulher no âmbito da pintura e do têxtil enquanto linguagem artística consolidada, questionando a genialidade atribuída aos autores dos monocromos mais glorificados da história da arte, como Kazimir Malevich e Yves Klein. O alinhavar da lycra revela sua textura e, portanto, o caminhar têxtil do processo criativo de Dani e de outras mulheres. Mais do que usar as mãos, elas concebem suas criações a partir de suas vivências, pensamentos e necessidades.
Na produção de Cavalier, é frequente a referência ao processo criativo de mulheres, direta ou indiretamente. É o que se vê em Três Marias (2025), na qual as lycras amarradas aos fios paralelos projetam suas pontas para fora do quadro, criando uma textura tridimensional que remete aos tapetinhos de lycra elaborados por mulheres a partir do reaproveitamento de restos e vendidos na beira de estradas. Já as estrelas são, para a artista, as três Marias que a protegem: Maria Conga, Maria Mulambo e sua avó Maria, que era costureira.
Como uma constelação, cada Pintura sólida carrega mitologias e se materializa pela aglutinação de fios de lycra (as estrelas) retirados da montanha que se acumula no chão. A primeira camada de lycra fiada é esticada de ponta a ponta sobre o chassi — cada um feito sob medida para suportar a tensão dos fios sem ceder. Essa base serve de suporte para alinhavar outras camadas de lycra fiada. A fiação, aliás, é uma etapa central do processo, geralmente realizada quando, segundo a artista, “ela quer pensar”. Trata-se de um processo mecânico e muito importante no trabalho têxtil: é a criação do fio que dará sentido e vida à obra. Os fios, no entanto, também traçam o próprio destino. Assim, ainda que a artista busque manter o controle, eles também se moldam conforme as interferências do acaso, do “lance de dados” do processo criativo. No sorteio das lycras fiadas no chão, uma prática oracular, há o que Dani denomina o “flagra das cores”.
Em seu processo, há uma intenção clara de subverter os valores historicamente atribuídos à presença das mulheres na arte e de construir memória por meio do fazer manual. Mas há também a intuição: cada obra nasce conectada a um estado de espírito. Seus trabalhos são “defumados” para criar uma atmosfera propícia às revelações. Por isso, o ritual no ateliê — descrito no início do texto — ocupa um papel essencial. Intenção e intuição atravessam a prática visual da artista e ela busca evidenciar essa relação na própria estrutura de cada trabalho.
Sobre a obra de Agnes Martin — como já destacamos, referência importante para Dani Cavalier — Catherine de Zegher observa que ela “tem sido descrita como se conduzisse o observador a espaços contemplativos, onde os processos de criação e visualização se fundem.[11] Na obra de Cavalier também percebemos o gesto, a materialidade e o caminho do processo. São as linhas que se atravessam no alinhavo das lycras, os desenhos e relevos que se constroem, a tensão no chassi.
A solidez das Pinturas sólidas está relacionada a dois tipos de resistência: a que se manifesta na tensão material das lycras sobre a estrutura de madeira e a que se impõe ao confrontar os cânones da pintura e da arte em geral. Essas obras são, ao mesmo tempo, palpáveis e contemplativas. Diante delas, o espectador pode vislumbrar as etapas do processo de sua criação ao acompanhar o percurso dos recortes de tecido e a construção das tramas, enquanto é também convidado a refletir sobre o lugar da pintura e das mulheres na história da arte. Ao apresentar a proposta da obra E sou eu filha do vento (2025), Dani cantarolou um trecho de um ponto de Iansã, que inspirou o título: “sendo eu filha do vento, o vento não pode me derrubar”. Uma mensagem que reverbera a solidez de sua obra.
Isabel Carvalho é professora e historiadora da arte.
[1] Todas as citações de Agnes Martin foram retiradas do livro Writings / Schriften, publicado em 1998 pela Hatje Cantz Publishers, e traduzidas pela autora.
[2] Rozsika Parker. The Subversive Stitch. Londres: The Women's Press Ltd, 1996, p. 4.
[3] Dani morava em um sobrado com seus pais na parte de cima e sua tia e avó na parte de baixo. O ateliê da tia estava localizado na parte de trás da casa.
[4] Julia Bryan-Wilson, Fray: Art and Textile Politics. Chicago: University of Chicago Press, 2017, p. 9, tradução da autora.
[5] Lucy Lippard, “Making Something from Nothing. Toward a Definition of Women's Hobby Art”, Heresies, n. 4, 1978, p. 62-65, tradução da autora.
[6] Miriam Schapiro & Melissa Meyer, “Waste Not, Want Not: An Inquiry into what Women Saved and Assembled--FEMMAGE”, Heresies, n. 4, 1978, p. 66-69, tradução da autora.
[7] Julia Bryan-Wilson, Seguindo os fios de Madalena. São Paulo: MASP, 2022, p. 50-75.
[8] Apud Sam Moore, “The Gender Trouble of Abstract Expressionism”, ArtReview, jan. 2024, tradução da autora.
[9] Maura Reilly, “A Dialogue with Linda Nochlin, the Maverick She”. In: Women Artists: The Linda Nochlin Reader. Londres: Thames & Hudson, p. 11-54, tradução da autora.
[10]Casey Lesser, “The Women Artists Market Report 2024”, Artsy, mar. 2024, tradução da autora.
[11] Catherine de Zegher, 3 x Abstraction: New Methods of Drawing by Hilma af Klint, Emma Kunz, and Agnes Martin. Nova York: The Drawing Center, 2005, p. 23 – 40, tradução da autora.