Antonio Maia: símbolos mágicos
Antonio Maia: reencantamento espiritual
Lucas Dilacerda
Antonio Maia nasceu em 1928, na cidade de Carmópolis, interior de Sergipe, no Nordeste do Brasil. Durante a sua infância, na zona rural, o artista foi fortemente marcado pela religiosidade popular, que posteriormente reaparece como tema de interesse na sua pesquisa sobre práticas espirituais, por meio dos ex-votos e do tarô. Pintor autodidata, estudou cerâmica, fotografia, desenho, gravura e outras artes, mas foi na pintura que encontrou o espaço fértil para o desenvolvimento de sua poética, que mistura o imaginário da religiosidade popular com o esoterismo do tarô e a magia das ciências ocultas, mesclando a visualidade popular com as tendências modernistas e construindo, assim, um estilo único e autêntico dentro da arte brasileira.
A obra de Antonio Maia pode ser dividida em três fases: 1) o abstracionismo informal; 2) os ex-votos; e 3) o tarô. A primeira fase, desenvolvida durante o final da década de 1950 e o começo da década de 1960, é marcada pelo abstracionismo informal, no qual o artista experimenta uma pintura matérica com o uso de cores terrosas, recorrentemente associadas pela crítica sudestina às paisagens do nordeste brasileiro. Em 1964, com a consolidação da nova figuração no Brasil — movimento de reação à abstração geométrica e ao concretismo —, Antonio Maia inicia a sua segunda fase, caracterizada pelos ex-votos nordestinos, a mais conhecida de sua trajetória e responsável por sua inserção no circuito nacional e internacional. Por fim, na terceira fase, iniciada em 1986, o artista realiza uma grande pesquisa sobre o tarô que se desdobra por mais de dez anos, a partir da qual ele produz algumas versões diferentes dos 22 arcanos maiores do tarô.
A exposição Antonio Maia: símbolos mágicos apresenta obras da terceira fase do artista, que discute temas como espiritualidade, inconsciente, esoterismo e religiosidade popular. Essas fases, no entanto, não são estanques: elas possuem uma forte ligação estética entre si e um acúmulo de repertório visual que vai se transformando ao longo do tempo. Nesse sentido, o abstracionismo da primeira fase — inicialmente informal — passa então a ganhar aspectos formais e orgânicos, expressos nos fundos geométricos de cores chapadas; e a figuração dos ex-votos, durante a segunda fase, torna-se agora a base pictórica para a construção da sua iconografia sobre o tarô.
Ex-votos
Ex-voto é um objeto que um devoto oferece a um santo ou divindade como forma de agradecimento por uma graça recebida, como a cura de uma doença ou um desejo alcançado. Nesse sentido, o ex-voto é uma promessa cumprida. A etimologia da expressão vem do latim ex voto suscepto, que significa "em cumprimento de um voto (promessa)". O devoto é aquela pessoa que pratica a fé para um santo ou divindade, o que envolve crença, compromisso e prática. Ele não apenas crê, mas também age a partir dessa fé, por meio de orações, promessas, peregrinações ou oferendas.
O ex-voto, por sua vez, não é apenas um objeto material, é também uma prática espiritual. Ele não se encerra na materialidade do objeto, mas se expande para a imaterialidade da fé. Trata-se de uma manifestação artística e popular, geralmente produzida em madeira — materialidade ancestral e fundamental para a xilogravura —, na qual são esculpidas partes do corpo humano, tais como cabeça, mão, braço, pé, coração etc. Além dos objetos em madeira, o ex-voto também pode ser uma fotografia, pintura, roupa, documento, objeto pessoal e muito mais. Tudo isso é explicado porque o ex-voto é, antes de tudo, um signo, isto é, um índice que se endereça a outra coisa fora dela. Por isso, a escultura de cabeça, enquanto um signo do corpo do devoto, estabelece no ex-voto uma ligação entre o corpo material e o corpo espiritual.
A pintura de Antonio Maia transforma o ex-voto em um signo, em uma ponte de conexão entre o céu e a terra. Isso explica a sua obsessão pela cabeça, que em diversas religiões é compreendida como o ponto de ligação entre o humano e o divino (mais-que-humano). No catolicismo popular, a cabeça é a sede da fé que nos conecta com Deus. Nas religiões de matriz africana (candomblé, umbanda, entre outras), a cabeça, o orí, é a comunicação com os orixás. Por isso, em diversos rituais católicos, afro-brasileiros e indígenas, a cabeça é um elemento fundamental em cerimônias, festas e ritos. Nesses contextos, a máscara surge como uma tecnologia espiritual de desrostificação do rosto humano da cabeça para nos induzir ao transe e ao acesso aos mundos espirituais.
Tarô
De 1986 em diante, Antonio Maia desenvolve a sua pesquisa sobre o tarô, resultando na reinterpretação em pintura das 22 cartas dos arcanos maiores. O tarô é uma ciência milenar que vem do povo hebreu, é uma antiquíssima tradição oracular que nos ajuda a ler os acontecimentos da nossa vida. Nesse sentido, o tarô não é uma premonição do futuro, mas sim um oráculo, pelo qual buscamos uma consulta espiritual em momentos de dúvidas e incertezas. O tarô também não é sobre adivinhação e sim sobre reflexão, que capta virtualidades do nosso contexto histórico e que nos ajuda a pensar e a tomar decisões no presente para construir o futuro.
O tarô é um baralho de 78 cartas divididas em dois grupos: 56 arcanos menores e 22 arcanos maiores. A palavra “arcano” vem do latim arcanum, que quer dizer “segredo”, “mistério” ou “enigma”. Nesse sentido, cada arcano aponta para certas regiões desconhecidas ou pouco exploradas da nossa vida. Por isso, abrir um tarô significa que estamos abrindo certas regiões da nossa vida que não estamos enxergando, fazendo com que esses aspectos imperceptíveis venham à tona e tornem-se perceptíveis, para que possamos conhecê-los e aprender com eles.
Os 56 arcanos menores apontam para as esferas do cotidiano da nossa vida: o trabalho, o amor, a família, a amizade, os sentimentos, o dinheiro e as ações do dia a dia. Eles são divididos em quatro naipes (grupos), que também simbolizam os quatro elementos: 1) Copas: simboliza a água e fala sobre os sentimentos e a subjetividade; 2) Paus: simboliza o fogo e representa a energia vital, o desejo, a força de vontade e as ações; 3) Espadas: simboliza o ar e fala sobre o mundo mental, a racionalidade, os pensamentos e a comunicação; e 4) Ouros: simboliza a terra e representa o mundo material, o dinheiro, o trabalho, a casa e a saúde.
Os 22 arcanos maiores apontam para os grandes momentos da trajetória de um indivíduo: mudar de carreira, se apaixonar, drásticas mudanças, descobrir quem você é etc. Eles são bem mais reflexivos por abordar temas mais profundos e universais. Se os 56 arcanos menores representam os quatro elementos, os 22 arcanos maiores representam o quinto elemento: o éter, que é um elemento imaterial formado pela junção material entre água, fogo, ar e terra.
Os arcanos menores estão ligados à consciência, e os arcanos maiores estão associados ao inconsciente, ou seja, ambos estão relacionados aos arquétipos que constituem a nossa subjetividade. Por isso, a leitura dos arcanos menores tem um caráter mais prático, enquanto a leitura dos arcanos maiores tem uma abordagem mais clínica, mais autorreflexiva. Cada arcano maior apresenta uma imagem que revela uma paisagem da geografia do inconsciente.
As cartas dos arcanos maiores são constituídas de três elementos: o número, a imagem e a palavra. O número — geralmente posicionado em cima, no céu da carta — vai de 0 a 21 e está ligado à numerologia do tarô, que organiza a ordem das cartas como capítulos de uma história. A imagem — posicionada no centro da carta — é uma cena composta por personagens e elementos que traduzem de forma poética os diferentes estados de espírito do inconsciente. A palavra — geralmente posicionada embaixo, na terra da carta — atribui um nome à imagem e, variando a tradução, pode variar os sentidos, tais como a carta “O Louco”, que também pode ser chamada de “O Tolo”, “O Bobo”, “O Andarilho” etc.
O tarô é uma iconografia do inconsciente, ele é um repertório visual constituído de experimentações plásticas que buscam produzir imagens para as experiências insondáveis da existência. Antonio Maia constrói a sua própria iconografia do tarô e, portanto, a sua própria mitologia dos arquétipos do inconsciente. Assim como a pintura, o tarô é uma outra forma de conhecimento que foge dos padrões normativos da ciência moderna, ele é uma forma de pensamento mágico que busca traduzir os sentimentos mais arcaicos da humanidade.
Não importa se o tarô é verdade ou mentira. O que importa é como ele nos proporciona uma experiência de autorreflexão sobre a nossa vida pessoal e coletiva. Se olharmos para o tarô de uma maneira cética e pragmática, percebemos que o que ele faz é mapear os elementos essenciais de nossa existência – o amor, o trabalho, a natureza etc. — e dividi-los em cartas. Mas isso não anula o fato de que, quando puxamos uma carta aleatoriamente, à sorte do acaso, o tarô nos oferece um momento para olharmos e refletirmos sobre certo aspecto invisível da nossa existência. Dessa forma, ele pode ser consultado diversas vezes para que, em cada uma delas, prestemos atenção a certas esferas da vida que estamos ignorando. Por isso, o tarô é um chamado para a vida.
Surrealismo nordestino e simbolismo semiótico
Uma cabeça levitando no horizonte. É essa atmosfera de surrealismo nordestino que habita as pinturas de Antonio Maia. De um lado, o seu interesse surrealista pelo inconsciente e por tudo aquilo que foge para além dos limites da razão: o sonho, o delírio, a fé, a magia, o sentimento místico etc. Do outro lado, o seu fascínio pelo realismo mágico do nordeste brasileiro e por toda a cultura popular que, constantemente, se preocupa em cultivar o reencantamento da vida.
Se as suas obras borram as fronteiras entre o real e a ficção é para transpor os domínios da matéria rumo aos espectros do espírito. Por isso, todos os elementos de sua pintura são signos, hipermídias que conectam a terra e o céu, o consciente e o inconsciente, a razão e o sonho, os santos e os arcanjos.
Em suas pinturas, encontramos uma variedade de signos. Geralmente, no lado inferior esquerdo da tela, temos a presença de signos do zodíaco (touro, gêmeos, virgem, libra, sagitário, capricórnio, aquário, peixes etc.); e também de signos de planetas (Saturno, Júpiter, Marte, Mercúrio, Urano, Plutão etc); além de signos de alquimia e de numerologia. Já no lado inferior direito da tela, aparecem letras do alfabeto hebraico.
No espaço da pintura de Antonio Maia, a figura e o símbolo compartilham uma mesma ontologia: são signos de re-ligação. Nesse sentido, tanto o símbolo como a figura são signos que apontam para multiversos paralelos à nossa existência. A escolha desses signos pode sugerir a composição do mapa astral de Antonio Maia e a maneira como ele reflete e interpreta o inconsciente.
Arte pop e arte popular
Certa vez, Frederico Morais declarou que Antonio Maia foi, provavelmente, o primeiro no país a ter conseguido um entendimento entre “pop” e popular. De um lado, o seu interesse “pop” pelas cores vibrantes e pelos elementos ordinários do cotidiano. Por outro lado, o seu fascínio pela cultura popular como fonte inesgotável de criação artística.
Historicamente, enquanto a arte pop foi atrelada às vanguardas artísticas modernas e contemporâneas, a arte popular foi associada à uma arte primitiva, naif, ingênua e inferior. A distinção de valor entre esses dois modos de expressão artística reflete um racismo estético, no qual categorias como “arte popular” muitas vezes são utilizadas para subalternizar produções artísticas oriundas do nordeste do Brasil, aprisionando-as em produções “locais” e “regionais” para, assim, valorizar e legitimar as outras produções artísticas do eixo Rio-São Paulo como “nacionais”.
Antonio Maia desconstrói os binarismos do racismo estético brasileiro quando faz de sua pintura uma síntese entre moderno, popular e contemporâneo. Em suas obras, vemos surgir figuras frontais e de perfil sobre fundos orgânicos e geométricos de cores chapadas. Em sua pintura, há uma economia da forma e uma simplificação do espaço, sem perspectivas e sem sombras. O desenho que contorna as figuras remete ao traço da xilogravura nordestina. A cor que preenche o espaço cria harmonia e fornece o peso para a manifestação dos corpos. O predomínio do azul — cor com alta carga espiritual em diversas religiões, responsável pela re-ligação com os deuses e os orixás — nos fornece um paralelo com o nosso inconsciente e exerce uma pressão para o interior da subjetividade. Enquanto as cores quentes, em especial o marrom e o laranja, realizam uma materialização das formas para o exterior do mundo. A geometria sagrada traduz um pensamento fractal de que toda microexistência reflete um macrocosmos.
Reencantamento espiritual
César Romero conta que Antonio Maia tinha uma coleção de 50 rádios e que conectava cada um deles a uma frequência diferente, ligando-os todos de uma só vez, e, assim, instaurando uma polifonia de sons e vibrações que fazia emergir um sentimento estético, religioso e místico.
Em uma época marcada por mudanças climáticas, a ciência moderna se mostrou incapaz de fornecer alternativas para a crise ecológica. Além disso, sofremos de um profundo embrutecimento da imaginação, que nos impossibilita imaginar saídas para além dos limites do sufocamento do possível. Diante desse contexto de crise, dúvidas e incertezas, o tarô pode abrir caminhos até então impensáveis para a racionalidade ocidental. Desse modo, torna-se urgente e necessário abrir uma escuta para as vozes mais-que-humanas, isto é, para outros espectros e agências de pensamento que nos possibilitem um reencantamento espiritual com a magia que habita a realidade. É essa força de reencantamento com o mundo que encontramos em cada pintura de ex-votos e de tarô de Antonio Maia.
Lucas Dilacerda é curador e crítico de arte, sócio da AICA – International Association of Art Critics.