Wilma Martins: territórios interiores
Wilma Martins convida a entrar
Domingo à tarde, hora da sesta, a casa está em silêncio. A moça desperta antes do marido e decide passar um café. Enquanto a água esquenta, ela acende um cigarro e busca a escova de cabelo para arrumar os fios depois da bagunça da cama. Ao olhar para a penteadeira, o susto: da revista que apoiara sobre o móvel saem minúsculos jacarés prontos para se espalhar pelo quarto. Na página, lê-se: “O aligator em geral não é agressivo e mantém abertos os canais dos pântanos americanos. O tamanho médio é de 3 m.” O espanto cresce ainda mais quando, diante do vívido e colorido couro dos bichos, ela percebe a casa cinza ao seu redor. Aquilo que ela conhece se apaga; o que não entende, reluz. Só as feras têm cor.
É dessa maneira que gosto de olhar as obras da série Cotidiano,da artista Wilma Martins (1934-2022): fantasiando a história em torno da cena, supondo qual percurso previsível da rotina foi desviado a partir do encontro com visitas inesperadas. Desenvolvida ao longo de dez anos, entre 1974 e 1984, em desenhos, pinturas e litografias, Cotidiano marcou a expansão da prática de Martins para além da xilogravura, técnica com a qual entrou no circuito das artes, realizando a sua primeira exposição individual em 1960. Ao longo da década em que desenvolveu Cotidiano, Martins consolidou-se enquanto uma artista original que, mesmo avessa a clubismos, conquistou o seu espaço, abrindo praticamente uma individual por ano entre o Rio de Janeiro e São Paulo, ganhando o prêmio de pintura do Panorama de Arte Atual Brasileira (1976) e participando da 38ª Bienal de Veneza, em 1978, com 5 desenhos da série.
Após um hiato de cerca de trinta anos sem realizar uma mostra individual, a série Cotidiano foi redescoberta a partir da exposição retrospectiva Cotidiano e sonho, apresentada em 2013 no Paço Imperial (Rio de Janeiro) e em 2014 no Centro Cultural do Minas Tênis Clube (Belo Horizonte), com curadoria do seu marido, Frederico Morais. Desde então, o seu trabalho passou a ganhar renovado interesse, participando da 32ª Bienal de São Paulo (2016); de importantes coletivas como Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985 (2017-2018); ganhando um livro monográfico com ensaios de Tania Rivera e Frederico Morais (2015), além de contar com uma individual póstuma no Paço Imperial em 2023. A exposição Wilma Martins: territórios interiores, agora apresentada pela Galatea, busca, então, contribuir para essa progressiva redescoberta da artista, tratando-se de uma oportunidade rara de ver tantas obras da série Cotidiano reunidas em uma só exposição.
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A sensibilidade de Wilma Martins à paisagem natural e aos bichos tem sua origem comumente situada na infância, vivida na periferia rural de Belo Horizonte. Dela também viria o prazer pelo desenho, que aprimorou enquanto aluna da Escola do Parque, hoje chamada Escola Guignard em homenagem a um dos seus mestres, o pintor Alberto da Veiga Guignard (1986-1962). Outro ponto destacado como importante na sua formação é o apreço pela leitura, também nutrido desde que era criança. Esses fatores — crescer em proximidade com a natureza e desenvolver o gosto pelo desenho e pela leitura — parecem justamente ter constituído a base sólida sobre a qual se erigiu toda a produção de Wilma e da qual se ergueu a sua capacidade de enxergar, se aproximar e fabular o mundo. Não por acaso ela também atuou, em paralelo à sua produção autoral, como ilustradora de livros infantis de escritores como Ana Maria Machado. Frederico Morais, no texto “Retrato-autorretrato da artista”, comenta justamente a correspondência entre o que Wilma produziu nos dois universos de atuação:
Constantes temáticas, formais e técnicas estão presentes tanto em suas pinturas e desenhos quanto em suas ilustrações infantis. Presença recorrente de animais e natureza abundante em interiores domésticos. Grandes áreas brancas e linhas apenas grafitadas, modelando objetos e situações. O real traçado com linhas em áreas brancas. O imaginário em cores e/ou manchas coloridas”[1]
Ao pensar a respeito de como a proximidade com a natureza e o hábito de leitura podem oferecer ao indivíduo — especialmente à criança — uma expansão do seu universo e uma capacidade de encontrar sentido e poesia nas coisas, penso na antropóloga Michele Petit em seu livro Nous sommes des animaux poétiques: l'art, les livres et la beauté par temps de crise [Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise] (2023), no qual investiga como os livros e as obras de arte nos ajudam a atravessar contextos de crise e a “transfigurar o inferno”.No capítulo “Ces paysages dont nous sommes faits” [Essas paisagens das quais somos feitos], ela comenta uma espécie de “necessidade psíquica de compor paisagens” que nós teríamos, e que alimentamos no contato com a arte e a literatura. Ela diz:
"‘A alma é uma predadora insaciável de paisagens, que alimentam o inconsciente’, escreve Claude Burgelin. Basta observar o quanto as crianças pequenas precisam desenhar não apenas uma casa, mas também, ao redor dela, árvores, um jardim, animais, um caminho, nuvens, o sol. Como se experimentassem uma necessidade psíquica de compor uma paisagem, um espaço cujos elementos formam um conjunto.”[2]
Diante das pinturas, desenhos e litografias da série Cotidiano, é como se víssemos esse mecanismo tomar forma nas frestas de exterior que Wilma abre no interior da casa, libertando o contexto doméstico — que, tantas vezes, principalmente para mulheres, pode ser uma espécie de prisão ou inferno — do seu isolamento a partir da acomodação do que vem de fora.
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O poder de fabulação e transfiguração, tão aguçado em Wilma Martins, é, então, brilhantemente formalizado na série Cotidiano. Nela, a desordem que vem se instaurar na previsibilidade da rotina produz uma distensão poética capaz de abrir brechas de mistério e invenção dentro de um universo que pode ser insuportavelmente banal. Essas brechas se instauram por meio de um um jogo de contrastes de cor e de escala: há uma curiosa desproporcionalidade entre os objetos, móveis e cômodos retratados em comparação com os bichos e intromissões da natureza. O isqueiro e o maço de cigarros são enormes ao lado do jacaré; cabras pastando, arbustos e um riacho cabem dentro de uma gaveta. De repente, os intrusos, de origem supostamente indomável, parecem mais dóceis do que os elementos da esfera doméstica, que, agigantados, oprimem com seu cinza-tédio esses pequenos signos da liberdade.
Em entrevista à Folha de São Paulo em 1976, quando questionada sobre a sua “situação de mulher que faz arte” e se haveria “uma problemática feminina” em sua obra, Wilma Martins responde:
Apesar de não aceitar com alegria essa divisão masculino/feminino, não posso negar que exista a diferença e que ela condicione minha maneira de ver. As tarefas a mim impostas influenciam e muito meu trabalho. Um homem não veria os objetos e a casa como eu os vejo às vezes. Inimigos dos quais tento fugir inventando oceanos em pias de cozinha e máquina de lavar, elefantes em vasos perto de um irritante telefone etc.[3]
Em seu relato, Wilma explicita a existência de tarefas impostas à mulher no contexto do lar. Esse contato com as minúcias da casa forjaria, então, o olhar feminino, desvelando perspectivas não compartilhadas com a posição masculina. É interessante, ainda, a ambiguidade da frase “Um homem não veria os objetos e a casa como eu os vejo às vezes” — seria ele incapaz de ver o cinza, ou na verdade, ainda mais incapaz de ver a cor?
No capítulo “A mulher casada” de O segundo sexo (1949), Simone de Beauvoir comenta o fato de que, na clausura da casa, aquele único território sobre o qual a mulher poderia exercer algum tipo de domínio, as invasões do mundo exterior e a dinâmica da ação do tempo poderiam ser percebidas, muitas vezes, como ameaças à sua ilusão de controle (frequentemente manifestadas em manias de limpeza), o que acabava por encolher ainda mais a sua experiência de mundo: “Lavar, passar, varrer, descobrir os flocos de poeira escondidos sob a noite dos armários, é recusar a vida, embora detendo a morte: pois num só movimento o tempo cria e destrói; a dona de casa só lhe apreende o aspecto negativo. (...) Mas é um triste destino ter de rechaçar continuamente um inimigo, ao invés de se voltar para metas positivas; amiúde, a dona de casa suporta-o com ódio.”[4] No caso de Wilma, os inimigos não são nem o tempo, nem os agentes externos; pelo contrário, são eles que a ajudam a se confrontar com a louça na pia e as roupas por lavar. As intromissões fantasiadas em Cotidiano vão de encontro, então, ao triste destino da dona de casa que de Beauvoir examinou: elas foram a maneira que Wilma encontrou de aceitar a vida.
Ao pensarmos sobre esses pequenos signos da liberdade que constituem o cerne das obras em Cotidiano, não é de se desprezar, ainda, o pano de fundo político que permeia todo o período de duração da série. Com o fim do milagre econômico e a queda de um importante pilar da propaganda do regime militar, o processo capenga de abertura política se iniciava no Brasil, estendendo-se por longos anos — entre 1974, com o governo Geisel, e 1988, com a promulgação da nova Constituição. Foram quatorze anos de avanços e recuos, ainda permeados de repressão e morte, além de negociações mais comprometidas com os ditadores do que com a tão aguardada democracia. Como não pensar que, ao se insurgir contra “a ditadura do cotidiano”,[5] Wilma Martins também se insurgia, sutil e poeticamente, contra a tirania exercida sobre todo um país?
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Ao dar notícias da casa e de seus visitantes inesperados, Wilma produz uma visão que transforma o ordinário em extraordinário, criando um universo no qual o dentro e o fora se entrelaçam. Nesse exercício, a artista explora, através do contraste entre o branco/cinza e a cor, a construção de zonas de maior ou menor tensão dramática, conduzindo o nosso olhar ao núcleo da cena, que só depois começa a descobrir o entorno. Como em um procedimento de colagem, os bichos e a natureza sobressaem feito adesivos sobre a tela e o papel. Entre os volumes e contornos delicadamente construídos na pintura e o fino e preciso traço do desenho, Wilma constrói uma inexplicável delicadeza.
É que as feras não ameaçam, mas arejam a casa. A pia não se resume à louça, ela recebe a água. De repente, toda essa argúcia poética nos contamina, e não conseguimos parar de criar pontes entre o dentro e o fora, de fabular a narrativa em torno da cena. É flagrante o poder que cada obra da série Cotidiano tem de mobilizar a imaginação. Diante disso, gosto de fantasiar que a poeta mineira Ana Martins Marques, ao escrever a primeira parte do seu livro Da arte das armadilhas (2011), intitulada Interiores, pensava em Wilma e a entendia com sofisticação, capturando o seu convite para o mundo:
TORNEIRA
Quem abre a torneira
convida a entrar
o lago
o rio
o mar[6]
FERNANDA MORSE é Pesquisadora e Curadora na Galatea
[1] Frederico Morais (org.). Wilma Martins. Rio de Janeiro: Tamanduá, 2015, p. 175.
[2] Michèle Petit. Nous sommes des animaux poétiques: l’art, les livres et la beauté par temps de crise. Auxerre: Sciences Humaines Éditions, 2023, p. 107, tradução da autora.
[3] “Wilma, a recriação solta e sem interpretações”. Folha de São Paulo, 19 de dezembro de 1976.
[4] Simone de Beauvoir. O segundo sexo: experiência vivida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p. 201.
[5] A expressão se encontra no título de um artigo de jornal sobre a artista. “Wilma Martins na Saramenha: a fuga da ditadura do cotidiano”. O Globo, 19 de abril de 1982.
[6] Ana Martins Marques. Da arte das armadilhas. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 18.