Gabriella Marinho: rastro luminoso
Gabriella Marinho: rastro luminoso
Gabriella Marinho (Niterói, 1993) compreende a arte como “um catalisador de detalhes” que pode ser usada como instrumento de reivindicação para existências e permanências. Em sua obra, a artista parte dos usos do barro para a criação de um léxico tanto metafórico quanto material, estreitando vínculos entre a ancestralidade e a corporeidade. Gabriella repensa os saberes contidos no manuseio de materiais terrosos — saberes que atravessam o tempo para além dos primeiros registros na história —, em um gesto que retoma ao corpo de pessoas negras a possibilidade de autodeterminação. Por meio de pinturas, fotoperformances, instalações e esculturas, a artista convida o público a imergir em um estado meditativo de introspecção e descanso, especulando uma pausa no intenso ritmo cotidiano para ir de encontro a dimensão espiritual humana. Sua exposição individual na Galatea — cuidadosamente apresentada no âmbito do programa curatorial da galeria, que afirma o compromisso com a mais recente produção artística brasileira — mostra um recorte de sua extensa pesquisa de maneira inédita ao contexto da cidade de São Paulo.
Como caminhos possíveis para além dos correntes sentidos de pertencimento e autoconhecimento, Gabriella conduz sua prática como forma de elaboração do senso de si em comunhão com as tradições espirituais do Candomblé. A partir da coleta e do uso de terra e de areia de diferentes lugares nas obras, sobrepõe a diversidade das construções territoriais enquanto sugere um deslocamento que é dado a ver em suas composições. Rastro luminoso, título da mostra, faz uma referência ambígua e profícua à imagem das secreções deixadas pelos percursos dos caramujos. A artista nos vislumbra com uma imagem que, enquanto se abre às mais diversas interpretações, retorna à senciência e aos significados da espiritualidade de origem africana.
Com alguma frequência, as pessoas negras no território nacional brasileiro se reconhecem como descendentes de diferentes povos do continente africano, trazidos no violento contexto da diáspora colonial. O deslocamento transatlântico forçado de pessoas africanas escravizadas para as Américas contribui como pilar fundamental para a produção hegemônica da organização socioeconômica centrada no capital. Baseada na expropriação e alienação, desdobrada pela valorização especulativa do tempo de trabalho, esta forma de viver juntos estrutura a hierarquia e a segregação de diferentes grupos sociais.
Esse dado de historicidade que circunda os corpos das pessoas que se identificam como negras, cada vez mais repercutido de maneira pública — à exemplo de políticas sociais em prol da reparação dos efeitos deste período —, por vezes toma significações pessoais na construção de vínculos com as tradições culturais e espirituais de matriz africana recriadas e continuadas no Brasil. As diversas nações do Candomblé — como Ketu, das tradições iorubás; Jeje, das culturas originárias do atual Benin e adjacências; a nação de Angola, dos povos bantu; entre outras — são fundamentais para o reconhecimento da continuidade, permanência e influência das culturas africanas para a formação do que se entende hoje como cultura brasileira.
De maneira avessa ao conservadorismo ideológico que age na manutenção das formas modernas de organização social, a continuidade das tradições culturais de origens africanas é atualizada pela virtualidade e pela plasticidade de cada corpo frente à sua experiência de mundo. Não obstante, são tradições transmitidas pela oralidade, isto é, independem de um meio “externo” ao corpo — como a escrita o faz — e são informadas pela vibração das cordas vocais de quem as enuncia, sempre no tempo que é convencionado chamar “presente”.
A ancestralidade, fabulada e reinventada por meio da oralidade como tecnologia viva de transmissão, encontra seus ecos através da prática artística de Gabriella. Por meio de uma escuta atenta ao que os saberes ancestrais têm a dizer fora da escrita, na vibração do corpo e na sensibilidade do gesto, a mesma virtualidade que anima a tradição oral africana — em que a palavra pulsa no agora, encarnada — reverbera na manipulação do barro e na escolha do branco como tônica imperativa nesta mostra, vocabulário em consonância às tradições espirituais. Nesse diálogo, a obra se torna meio de enunciação: os elementos materiais e simbólicos que compõem suas instalações se oferecem como registros de uma memória ancestral que não se fixa no passado, mas se transforma em presença criadora e cuidadora, tal como a palavra dita, ou como o igbín, que carrega em sua espiral o tempo dobrado da existência.
Em sua intimidade com a matéria, dada a ver pelos vincos das mãos que moldam as cerâmicas em porcelana, a artista faz associação entre o branco e o igbín — caramujo, em iorubá —, delineando uma investigação da morfossintaxe referente aos símbolos de Oxalá, orixá mais antigo e pai de todos os demais orixás do Orum — no Candomblé, o mundo espiritual. A instalação ibis, formando um círculo de conchas de caramujos com pontas de alumínio, e a escultura em cerâmica esmaltada Cabeça de caramujo, refletem este campo resplandecente da energia de criação como sendo a mesma da proteção e do cuidado. A alta densidade forjada pela temperatura extremamente elevada, combinada a fragilidade da matéria resultante da porcelana, dá corpo à paciência, introspecção e determinação das pessoas que já viveram por longos tempos — assim como a iluminura do branco, junção de todas as cores que nos envolve em uma atmosfera pacífica.
Frente à inegável interrupção projetada pela subjetividade moderna para pessoas negras darem sentidos a si, recorre-se amplamente às noções disponíveis de ancestralidade; seja por um desejo de reconexão espiritual frente às angústias coloniais do mal-estar da civilização, seja pela necessidade de insurgir contra os dispositivos que moldam e governam a subjetividade moderna. Se, no pensamento agostiniano, a interioridade se apresenta como o lugar da iluminação divina, e na psicanálise freudiana se desdobra como espaço cindido guiado por pulsões a ser organizado pelo próprio sujeito, a obra de Gabriella propõe uma outra espacialidade — não centrada na clausura ou na transparência do “eu”, mas no entrelaçamento entre a ancestralidade e a matéria, em um processo de autoconhecimento que é relacional e não autocentrado.
Alinhada a uma cosmologia que compreende a ancestralidade como interespecífica — isto é, amálgama entre outras espécies mais-que-humanas, vegetais, minerais, energéticas —, a prática de Gabriella não se limita a um gesto estético, mas aciona um campo ético, ontológico e epistêmico que tensiona as próprias formas históricas de construção do sujeito. As formas suspensas em paisagens de sisal e de anil como em Cascata, ou as sinuosidades topográficas em esculturas e pinturas que evocam diretamente a presença dos lugares visitados como na série Rastros, por exemplo, são partituras possíveis desta coreografia de tempo espiralar — para evocar, concomitantemente, as poéticas do corpo-tela de Leda Maria Martins e os desenhos das cascas dos caramujos.
Ao revisitarmos os fundamentos da subjetividade moderna que justificam as relações de dominação com objeto – as mesmas das lógicas de expropriação e escravização de pessoas africanas –, a iluminação da interioridade aparece como revelação da verdade, como bem descritos pela tradição filosófica de Santo Agostinho na relação entre a confissão pessoal e a divindade sobre-humana. Aqui, Gabriella nos apresenta um ponto de inflexão a este pensamento por meio do fluido que deixa rastros em seus caminhos, ao passo em que se desvela à visibilidade em um aspecto relacional entre luz, ponto focal de visão e o que [não] é visto. Neste significante que faz referência a Oxalá, um corpo que deixa vestígios, que podem ou não ser percebidos, abre espaço para a ruína da subjetividade moderna, ao passo em que desfaz o campo recíproco de introjeção e projeção verificado pela psicanálise.
Neste ensejo, a artista nos oferece ainda uma brecha para um ponto de partida outro para as significações: o caramujo não representa Oxalá, mas é Oxalá, interrompendo a operação categórica do conhecimento moderno que separa e representa como momento significativo de subjugação. A partir desta observação, é possível ainda estabelecer diálogos entre a obra de Gabriella e a crítica racial de Denise Ferreira da Silva, em que a racialidade é posicionada como pedra de toque fundamental à formação do sujeito científico moderno, diluindo o contraponto entre a transparência — reservada à suposta universalidade da cultura europeia — e à afetabilidade — atribuída à diferença cultural, e, por consequência, a todos os corpos não-brancos.
O uso dos diversos materiais que são conjugados juntos do barro, como o alumínio, a palha da costa, o sisal, o waji, os búzios, entre outros, fazem referências diretas aos elementos espirituais dos terreiros de Candomblé. Os rastros que a artista persegue rumo a esta ancestralidade comum ao continente africano, aparecem como arquivos da visibilidade corpórea na subjetividade de pessoas negras: vestígios do caráter situado da experiência, compreendendo a percepção através do seu contexto cultural e histórico. À baila da fenomenologia sartriana e das análises de Frantz Fanon sobre a experiência vivida da negritude, a visão que se traduz na consciência de ser visto age no escamoteamento da subjetividade de pessoas racializadas, na qual a pessoa negra é determinada de maneira “externa” a si como tal.
Ao mesmo tempo em que se oferece ao olhar, a obra de Gabriella o desorienta por alumbramento, operando na diluição das separações entre o dentro e o fora de si. Contra a lógica do racismo colonialista que, ainda segundo Fanon, desorganiza o esquema corporal do sujeito negro e compromete sua ação no mundo, Gabriella elabora uma resposta plástica e simbólica que reafirma a presença e reorganiza a agência, investindo na materialidade como veículo de reordenação do sensível. Como levantamentos pelas liberdades nos assentamentos dos terreiros, as tradições africanas orientam as formas coletivas de significação para as vidas das pessoas que as cultuam e vivem através destes significados, assim como são manejadas pela artista.
O que poderia, portanto, significar um corpo que se inscreve no espaço através do tempo, da maneira vagarosa e impassível como o caramujo o faz? Justamente para abandonar esses descritores categóricos que ancoram o conhecimento moderno, Gabriella molda a cerâmica, coleta a terra e perpetua o rastro luminoso em uma relação de corporalidade nas obras. Entre as dunas de areia aqui instaladas para receber os visitantes da mostra, Gabriella inscreve seus próprios trânsitos como forma de ritualizar os significados em sua vida pessoal. Como o título da escultura que afirma que caminhos são como impressões digitais, a artista denota um campo de particularidade que dá forma ao que se vê, elaborando-os ainda para a partilha coletiva desta mesma sensibilidade.
Por fim, a obra de Gabriella Marinho não apenas reafirma a continuidade de tradições culturais e espirituais de matriz africana, mas ainda intervém nas tecnologias de produção do sujeito, subvertendo o campo visual e conceitual no qual a subjetividade negra é historicamente confinada. A luz, metáfora tão cara à modernidade para o modus operandi de revelação da verdade, aqui aparece como forma de opacidade que resguarda os mistérios existenciais das ancestralidades negras. O rastro luminoso torna-se, então, uma imagem de fuga e de presença, um vestígio que não se deixa capturar pela lógica moderna da interioridade isolada, mas que insiste em existir como energia, relação, fluxo e memória viva.
MATHEUS MORANI é curador, pesquisador e educador. Curador do Solar do Abacaxis. Fundador do ainda,lab, grupo de estudos experimentais.