Poli Pieratti: a invenção da maré: Texto crítico: Veronica Stigger
Poli Pieratti e o triunfo de Galatea
Veronica Stigger
Poli Pieratti costuma conceber as obras a serem exibidas em suas exposições individuais levando em conta não apenas as particularidades físicas do espaço em questão, mas também o universo simbólico e conceitual sugerido pela própria denominação do lugar. O nome da galeria Galatea, onde se realiza esta exposição, evoca, conforme se lê em seu site, o mito de Pigmaleão:
Este mito narra a história do artista Pigmaleão, que ao esculpir em marfim Galatea, uma figura feminina, apaixona-se por sua própria obra e passa a adorá-la. A deusa Afrodite, comovida por tal devoção, transforma a estátua em uma mulher de carne e osso para que criador e criatura possam, enfim, viver uma relação verdadeira.[1]
A estátua esculpida e adorada por Pigmaleão não tem nome nas versões mais antigas do mito, como, por exemplo, nas Metamorfoses de Ovídio, texto que serve de base para muitas adaptações literárias e artísticas da narrativa. Só mais recentemente é que ela passa a ser chamada Galatea, designação que teria surgido pela primeira vez na peça Pygmalion,[2] do filósofo Jean-Jacques Rousseau, encenada em 1770 e publicada no ano seguinte no Mercure de France. Nesse breve drama de ato único, é assim que Pigmaleão exalta a beleza de sua criatura: “Oh, Galatea! Recebe minha homenagem. Sim, eu me enganei: quis te fazer ninfa, e te fiz deusa.”[3] Ao afirmar que gostaria de tê-la feito “ninfa”, Pigmaleão deixa sugerido de onde provém o nome que atribuiu à sua escultura: da ninfa Galatea, filha de Nereu e de uma divindade marinha. Apaixonada por Ácis, a ninfa era perseguida pelo monstruoso ciclope Polifemo, que a amava. Quando este a flagra junto a Ácis, tomado por ciúme e ira, atira um pedaço de rochedo sobre o rival, esmagando-o. Galatea então transforma o amado num rio, devolvendo-lhe “a sua forma ancestral” (seu avô era uma divindade que personificava um rio[4]). Nas Metamorfoses de Ovídio, é ela mesma quem narra o desfecho de sua desventura:
O sangue purpúreo corria do rochedo, e, dentro de algum tempo, a cor vermelha começou a clarear, tomou a coloração de um rio agitado pelas primeiras chuvas, e acabou se tornando límpido. Então, o rochedo partido se entreabre, e, na fenda, surge um caniço e, através da abertura, ouve-se o ruído de uma água borbulhante. E — coisa admirável — aparece de súbito um jovem ostentando uma coroa de junco flexível em torno dos chifres nascentes. Ainda, porém, que fosse mais alto e tivesse o rosto cerúleo, era Ácis. Ácis, todavia, mudado em rio, que conservou seu antigo nome.[5]
Poli Pieratti, inspirada no nome da galeria Galatea e na proximidade com o mar de sua sede de Salvador, convoca a imagem dessa nereida, exibindo pinturas inéditas que, por um lado, trazem elementos que poderiam compor o ambiente da narrativa mítica em questão, como o fundo do mar, ondas, corais, rochedos e recifes, e, por outro, representam a própria figura da ninfa, como em Galatea I, baseada em Vênus ou Galatea conduzida por golfinhos (c. 1590-95), de Agostino Carracci, obra que, por sua vez, é uma releitura do tema que Rafael Sanzio tornou clássico com o título de O triunfo de Galatea (c. 1514). Galatea I não é a única pintura aqui exposta que dialoga com obras icônicas da história da arte: Onda II faz uma evidente referência à Grande onda (1831), de Hokusai, e Onda e ventania III, para citar mais um exemplo, retoma alguns aspectos de A onda (1915), de Anita Malfatti, que já havia servido de ponto de partida para Onda e ventania II, exibida dois anos antes na individual A terra do mar, realizada no prédio da rua Libero Badaró, no centro de São Paulo, que abrigou a famosa exposição de 1917 da artista modernista.
Se o nome da galeria levou Poli Pieratti a conceber esta exposição em torno da figura da Galatea, tal contingência acabou por encontrar enorme ressonância em sua obra: a água está presente, desde o começo, em boa parte de sua produção. Sua primeira exposição individual chamava-se Submersa (2023), e uma de suas séries iniciais de trabalhos foi Família água, decorrente de outra contingência: o encontro de um álbum de fotografias repleto de imagens de familiares em piscinas, em rios ou no mar. Em uma entrevista, Poli conta como criou a partir destas fotos:
Quando juntei as cenas em um desenho, eu fui preenchendo as sensações de vazio com os reflexos da água, que tingiam a piscina. Essa água foi tomando conta de tudo, como se todas as cenas estivessem submersas, como se não houvesse mais uma noção de superfície, como se a liberdade vencesse.[6]
A descrição do princípio criativo dessa série de trabalhos que Poli considera “como uma matriz de todos os outros”[7] — uma descrição que é, ao mesmo tempo, técnica (“juntei as cenas em um desenho”, “fui preenchendo as sensações de vazio com os reflexos da água”) e poética (“essa água foi tomando conta de tudo”) — permite perceber como, para ela, a água não é tomada apenas como um tema, mas também como um meio e, mais do que isso e antes de tudo, como um modo de pensar e de pintar. Leitora atenta de A água e os sonhos, de Gaston Bachelard, livro do qual já extraiu epígrafes para mais de um projeto seu, Poli Pieratti talvez concorde com o filósofo francês quando este afirma que a água “deve comandar a Terra”. Afinal, conforme ele acrescenta: “É o sangue da Terra. A vida da Terra. É a água que vai arrastar toda a paisagem para seu próprio destino”.[8] A água, em suma, esculpe a paisagem. Disso, podemos depreender que a água — o elemento líquido, fluido e, portanto, dinâmico — é a força que dá forma, significado e, não menos, vida à matéria antes inerte.
Foi essa potência transformadora e vivificadora que Poli Pieratti encontrou na água. Em suas pinturas, a artista atua como se dissolvesse em líquido os elementos e as figuras que quer representar (incluídas aí as obras dos “grandes mestres”), como se os submergisse e, assim, os diluísse, buscando eliminar aquilo que os tornava definidos. As próprias pinceladas — geralmente curtas e fluidas, que se espalham pela superfície pictórica, alternando tons de azuis e ocre-vermelho — invocam o fluxo da água. É como se só através da água fosse possível ver a verdade (ou seria melhor dizer, a profundidade?) das coisas, ou, lembrando mais uma vez a descrição de seu processo criativo por Poli Pieratti, como se só por meio da intervenção da água fosse possível fazer deixar de existir “uma noção de superfície”. Como vimos, para a artista, é preciso superar essa noção para que a liberdade vença.
O mito já prefigurava essa vitória. Ao ver seu grande amor esmagado por uma rocha, Galatea o transforma em rio. Este é o triunfo da ninfa sobre o gigante Polifemo. É como água que Ácis se liberta de seu destino. Como água, ele se torna fluxo e, outra vez, vive. Nessa imagem, talvez pudéssemos vislumbrar uma síntese de uma das proposições de Bachelard, a partir de Heráclito, tão cara a Poli Pieratti, a de que somos também feitos de matéria impermanente: “Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio, porque, já em sua profundidade, o ser humano tem o destino da água que corre”.[9]
VERONICA STIGGER é escritora, curadora e crítica de arte
[1] Cf. https://galatea.art/quem-somos/.
[2] Cf. Helen H. Law, “The Name Galatea in the Pygmalion Myth”, in The Classical Journal, v. 27, n. 5, fev. 1932, p. 341. Comenta Law: “Não conheço nenhum paralelo exato deste caso particular, isto é, nenhum outro caso em que, nos tempos modernos, um nome que não está nos escritores antigos foi adicionado a um mito e o nome foi tão comumente aceito pelo uso popular que acabou se infiltrando nos manuais de mitologia” (Idem, p. 342).
[3] Jean-Jacques Rousseau, “Pygmalion”, in Oeuvres de J.J. Rousseau: tome huitième. Paris: Deterville, 1817, p. 347, tradução da autora.
[4] Ovídio, Metamorfoses. Rio de Janeiro: Ediouro, 1983, p. 254.
[5] Idem, p. 250.
[6] Poli Pieratti em entrevista para Domo Damo.
[7] Idem.
[8] Gaston Bachelard, A água e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 65.
[9] Idem, p. 6.

