Apresentação

Chuva de prata

Alana Silveira

No escuro da noite, o brilho da lua é refletido na chuva, trazendo uma luz prateada para cada gota no percurso entre o céu e a terra. Essa cena, de irreal magia e beleza, traz a imagem de algo que acende uma luz que vem de dentro, como quando somos atravessados pelo amor.

“Se tem luar no céu / Retira o véu e faz chover / Sobre o nosso amor”. Chuva de prata, canção eternizada na voz de Gal Costa, dá título à exposição e à instalação site-specific de Estela Sokol desenvolvida para a Galatea Salvador. A música traz o amor como experiência luminosa e transformadora, evocando o instante em que a claridade do luar prateia a chuva e tudo ao redor parece ser tocado e aceso.

Assim como a lua é um corpo celeste que não possui luz própria, já que reflete o brilho do sol iluminando a noite, a instalação Chuva de prata também emana uma energia luminosa que não é produzida, mas absorvida da luz ambiente e devolvida no momento da escuridão. A presente exposição reúne um pequeno conjunto de obras que dialogam com esse projeto site-specific, resultado da investigação da artista sobre fotoluminescência e ativação da arquitetura que envolve os seus trabalhos. 

Estela Sokol experimenta materiais industriais e orgânicos, explorando luz e cor através da luminescência e da mutação cromática ao longo do tempo. Transitando entre escultura, pintura expandida e instalações públicas, a artista desenvolve uma pesquisa que utiliza materiais industriais para criar obras cuja coloração se transforma através da incidência de energia luminosa, recorrendo a pigmentos fotoluminescentes aplicados à composição ou à superfície das peças.

Em seu processo de pesquisa e prática experimental em torno da expansão dos limites da pintura, manifesta-se um gesto simultâneo de ruptura e diálogo com a tradição da arte moderna. O pensamento sobre a ampliação do suporte se manifesta tanto na manipulação de materiais industriais na construção dos seus quadros e esculturas, quanto na própria materialidade da cor, ora sendo feita através da sobreposição de elementos, ora pela transformação cromática das superfícies. As investigações sobre fotoluminescência e fosforescência fazem parte de uma tentativa de criar objetos em constante mutação pictórica, obras que se transformam com a luz e com o tempo.

Ao tempo que reinventa signos tradicionais, Estela se propõe a aproximar as obras do seu referencial de mundo e arte. Com leveza e humor, traça paralelos entre a geometria e as formas da vida — lua, sol, animais, comidas e tantos outros objetos do cotidiano — e estabelece diálogos com artistas que compõem seu repertório afetivo e visual, como Volpi, Guignard, Matisse, Paulo Pasta e Philip Guston. Nesse movimento de aproximação, há uma tentativa de nomear o imaginário que circunda as suas obras. A artista recorre à música, nomeando diversos trabalhos a partir do seu repertório musical, evocando imagens e atmosferas sugeridas pelas canções. É nesse gesto que se insere Chuva de prata, título que atravessa e conduz toda a exposição, como uma metáfora para o instante mágico em que a luz toca a matéria e o mundo parece se transformar, suspenso entre o mistério e o encantamento. 

A instalação site specific foi concebida para ativar a sala expositiva do “cofre”, mas ultrapassou a caixa-forte, ocupando outros espaços da galeria. A Galatea Salvador está situada no primeiro edifício modernista da Rua Chile, a rua mais antiga do Brasil, e a ocupação que inaugurou o espaço onde hoje funciona a galeria foi a sede de um banco. Na reforma, optou-se por preservar alguns elementos que guardam a memória do espaço, mantendo o antigo cofre, hoje transformado em sala expositiva. Essa permanência do moderno, que resiste na arquitetura, encontra eco em diversos aspectos da obra de Estela Sokol.

Chamando a atenção de quem passa na rua, antes de adentrar o prédio, é possível avistar um letreiro em gás azul neon, anunciando a Chuva de prata, como um prenúncio do que irá se revelar no interior da galeria. Os letreiros de neon, invenções emblemáticas da modernidade urbana, são símbolos de cor e luz, elementos que atravessam o trabalho da artista. Esta é a primeira vez que Estela materializa uma frase em forma de letreiro, gesto que reforça seu desejo de incorporar a linguagem verbal como matéria luminosa e de convidar o público que passa na rua a conhecer o espaço expositivo.

A cor do letreiro se sobrepõe às gradações de azul presentes no céu e no mar da cidade de Salvador, criando uma ponte simbólica entre o exterior da galeria e o universo submerso no interior. Para chegar à instalação, o visitante atravessa A invenção da maré, exposição da artista Poli Pieratti que ocupa a primeira sala da galeria. Nesse percurso, o olhar encontra a escultura La isla, uma peça em poliéster, fibra de vidro e quartzo, repousada no chão como uma concha. Entre plásticos e minerais, algo em seu interior parece emitir um brilho discreto, como uma pista para o que virá a seguir.

Ao adentrar a sala do cofre, somos imersos na instalação como quem penetra o interior de uma concha, onde se guarda uma preciosa pérola. Com o brilho de uma jóia neon adornando as paredes, o cofre abriga a instalação Chuva de prata, composta por mais de trezentas peças modulares em formato de gomos, com variações sutis de tamanho, espessura e cor. As peças se dispõem em movimentos ondulantes, lembrando escamas invertidas que revestem o espaço. Estela comenta que as formas da instalação dialogam com a geometria de Athos Bulcão, evocando elementos da arquitetura modernista e traçando um diálogo direto com o espaço que a acolhe.

Os gomos possuem a superfície externa branca e a face interna recoberta por pigmentos fotoluminescentes com predominância de azuis e amarelos, tonalidades mais potentes e duradouras. No ambiente naturalmente escuro do cofre, a face interna das peças se acende, reverberando um brilho vivo entre as paredes e superfícies brancas. Os módulos fotoluminescentes absorvem luz durante a noite, e a instalação permanece iluminada para absorver energia luminosa, reinventando a luz da lua. É então que cada gomo torna-se uma gota dessa chuva de prata, absorvendo e devolvendo luz ao espaço. Durante o dia, emite um brilho residual do que foi absorvido.

Quanto mais luz a instalação recebe, mais intensamente se ilumina. No cofre, a Chuva de prata é guardada como uma jóia, um segredo de como acender, cada dia mais, o brilho que nasce do encontro entre luz e matéria, a mesma luz do amor que, como canta Gal, acende cada pedaço de nós.

 

ALANA SILVEIRA é produtora cultural, curadora e diretora da Galatea Salvador

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