Anísio O. Couto: Texto Crítico: Renato Menezes
Anísio O. Couto: o olho e a butterfly
“(...) Acontece que naquele país (o Japão) o império dos significantes é tão vasto, excede a tal ponto a fala, que a troca dos signos é de uma riqueza, de uma mobilidade, de uma sutileza fascinantes, apesar da opacidade da língua, às vezes mesmo graças a essa opacidade.”
Roland Barthes, O império dos signos, 1970
Na pintura de Anísio O. Couto, o perímetro do quadro define, em geral, uma área análoga a uma mesa ou bandeja de refeição, sobre a qual o pintor organiza objetos variados. Cestas de frutas coloridas (inteiras ou partidas), bules e xícaras, olhos e ovos resultam de uma cuidadosa coreografia das mãos que, ao manipular os volumes, refundam, no plano, uma nova ordem do espaço. Vista de cima — como em uma espécie de sobrevoo que, ao invés de reduzir, aumenta a escala dos objetos —, essa mesa ou bandeja de refeição parece atualizar a definição que Henri Matisse deu à pintura: “Para mim, um quadro deveria sempre ser decorativo”. Nessa formulação, a palavra “decorativo” define uma forma específica — e desierarquizada — de articulação entre figura e fundo, livre dos códigos da perspectiva e do autoritarismo racionalista da linha.
Assim, o espaço emerge da cor, não como preenchimento do desenho ou como descrição da coisa-em-si, mas, ao contrário, como meio de expressão e de construção, buscando um acordo rítmico das massas plásticas, sem ilusionismo, sem mágica e sem tensão entre planos. Tudo está onde deve estar. Tirar uma figura e acrescentar outra, mudar um objeto de lugar, recombinar sutilmente as formas e as cores para que, dessa nova reconfiguração, algo igualmente novo seja notado com surpresa e resignação (pois nunca se perde a esperança de que a parte desaparecida reapareça em outro contexto): assim o quadro se resolve, invariavelmente, como se resolvem os jogos de tabuleiro, e se estrutura também como se estruturam as palavras. Sem nenhuma ordem fixada, nenhum protocolo, as peças se movem sobre o plano dinamizando sua estrutura, simplificando a formulação de Deleuze, para quem a repetição não é a produção do mesmo, mas, ao contrário, é o motor da criação e do devir, de onde surge a identidade, a singularidade, o único. Isso explica, talvez, a dignidade que seus objetos ostentam com orgulho e certeza.
Entre todas as figuras que povoam suas obras, as que mais chamam a atenção são os olhos, sempre abertos, estatelados como ovos fritos (ou ovos cozidos seccionados, inteiriços, vistos de cima), autônomos, vivos. Os olhos pintados por Anísio não são mais a parte do corpo, mas o corpo inteiro ou, quem sabe, um conceito reificado pela habilidade com a qual manipula seus cotonetes (instrumentos que, em sua prática, substituem os pincéis). Os olhos abertos sobre a mesa, bem distribuídos, evocariam os de Santa Luzia, mártir que teve seus órgãos arrancados — e milagrosamente restaurados por Deus — por não renunciar ao cristianismo, se eles aparecessem apenas em par. No entanto, em sua obra, eles são numerosos, assumem tamanhos e formatos diversos, por vezes variam até nas cores, mas nunca deixam de estar atentos e fixos, como se estivessem sempre prontos para encarar a verdade interditada, com a certeza de que nada lhes fará fecharem-se em si mesmos.
Os olhos, na pintura de Anísio, parecem incorporar certo caráter apotropaico, como uma espécie de amuleto destinado a neutralizar o seu oposto, o olho maligno (o baskania em grego; ayin hara em hebraico; malocchio em italiano). Assim como os turcos recorrem ao nazar e os egípcios ao wedjat, o olho curado de Hórus, o deus falcão, a cultura popular brasileira encontrou na semente de Mucunã (Dioclea grandiflora), o “olho de boi”, um poderoso instrumento contra o “olho grande” — pois olho se combate é com olho. Mas Anísio produz o seu próprio objeto de proteção e vigilância, forma concreta de um olho-conceito, algo familiar ao ovum philosophorum (ovo dos filósofos), ao qual os alquimistas atribuíam certa função de receptáculo do poder de transformação das coisas, analogamente ao olho como receptáculo da imagem: a gênese da vida coincide, aqui, com a gênese da própria imagem. Ao olhar para o olho, o que é mau fica bom e o que é bom fica melhor, sem qualquer chance de retrocesso. Trata-se, no fundo, de um olho cósmico, cuja forma reproduz, em outra escala, a forma do mundo e da célula, em cujo interior mais profundo reside a menor (e maior) unidade da vida.
O olho-ovo da transformação nos orienta, de modo menos inusitado do que pode parecer, às butterflies — como Anísio chama as borboletas, animais de sua predileção. Como no caso do olho-ovo, a butterfly é a etapa final de uma vida devotada à transformação, determinada pela metamorfose. A vida da lagarta à borboleta, passando pela crisálida, descreve a conversão do ser terrestre em ser aéreo, do denso ao etéreo, uma espécie de abertura ao devir vertical da ascensão, razão pela qual, historicamente, esse ciclo foi associado à metanoia, à mudança de pensamento, à transformação espiritual, à conversão, ao renascimento de uma nova visão, enfim. A mesma alquimia que via no olho-ovo o núcleo essencial da vida viu na borboleta um símbolo do processo de transformação do chumbo em ouro, da matéria bruta em espírito, em um processo no qual a crisálida equivale ao nigredo, o casulo ao albedo e a borboleta ao rubedo. Novamente, a butterfly resulta de um trabalho dedicado de reificação, cuja arché se encontra na palavra grega psyché, que significa ao mesmo tempo alma e borboleta. Na mitologia, Psique é uma jovem mortal que se torna imortal após inúmeras provações. De sua união com Eros, o amor, nasce Voluptas, o prazer: isto é, a reconciliação entre a alma e o corpo. Antes do nascimento de Voluptas, o mito é regido pelo interdito do olhar: Eros permite que Psique o ame, mas a proíbe de vê-lo. Voluptas é, assim, filho do olhar redimido. O olho e a borboleta tornam-se, mais do que nunca, partes indissociáveis do prazer que conduz à ascese. “O olho”, escreveu Leonardo Da Vinci, “é a janela da alma”.
Olhos e butterflies são objetos frágeis, que demandam atenção e zelo, resistem ao toque com a mão inteira e operam pela atração. Talvez por isso sejam figuras que aparecem com tanta assiduidade na obra de Anísio, que tem habilidade no manejo desse tipo de objeto. No início dos anos 2000, ele trabalhou em uma loja no centro do Rio de Janeiro, na rua Camerino, que fornecia plumas e marabôs para o carnaval. Uma de suas funções era a de preparar as penas de pavão, conhecidas pela exuberância das cores, por sua qualidade iridescente e pelos ocelos, uma estrutura que se assemelha a um grande olho cercado por anéis brilhantes, mas também por sua delicadeza, dada a sua extensão, flexibilidade e leveza. O trabalho com as plumas parece ter introduzido, em sua pintura, uma atenção às texturas e ao cuidado com a matéria que resiste ao gesto brusco e só responde ao toque paciente. Mais ainda, essa experiência parece ter sido decisiva para o modo como Anísio passou a conceber o espaço pictórico não enquanto um campo de reformulação, mas de expansão do real — um espaço em suspensão em que cada componente da composição é pousado suavemente sobre o plano, assumindo uma qualidade quase hierática, hieroglífica, enigmática. Essa qualidade se revela à medida que percebemos as variações de um mesmo tema: as formas dos frutos, das aves, dos peixes e dos bules perdem, pouco a pouco, seu caráter dêitico, relativo, para que, irreversivelmente, assumam suas identidades e sejam como são.
Anísio O. Couto pinta coisas concretas, objetos materiais, situações e fatos. Não economiza na expressão “isso aconteceu de verdade”, assim como não se intimida diante do desconhecido: quer saber, descobrir, ver, ler, conhecer. Tudo é material, tudo é repertório, tudo ainda há de repousar, como olhos e butterflies, sobre sua mesa para que dela surja, um dia, um altar.
Renato Menezes é historiador da arte e curador da Pinacoteca de São Paulo.

