Jaula: Paço Imperial – Rio de Janeiro | curadoria e texto crítico: Lilian Schwarcz
Jaula
Lilia Moritz Schwarcz
Jaula, a nova exposição do consagrado artista carioca, Daniel Lannes, é um
convite a um passeio devidamente desviado pelas tintas que interferem e alteram
o documento oficial. Nas pinturas aqui apresentadas, a história serve de pretexto
para novas traduções políticas e sociais, realizadas com um traço poderoso e
apurado senso plásticos e estéticos. Trata-se, assim, de uma “contrahistória
visual” desse país que recriou seu passado sob o signo da concórdia e da
harmonia. Uma monarquia tropical e depois uma república que escondiam seus
alicerces: a permanência do escravismo e depois da desigualdade. Por isso, os
pincéis de Lannes, borram, esfumaçam e confundem.
Jaula também desestabiliza o retângulo mágico da pintura; as limitações que a
tela branca impõe, seus constrangimentos espaciais e possibilidades imaginativas.
Muitas vezes imensas, as pinturas de Daniel Lannes se recusam a se confinarem
aos espaços a elas originalmente destinados. Vazam sempre e dessa maneira
desconcertam.
Jaula homenageia, ainda, no mesmo movimento que traduz e atualiza, a janela
renascentista, com a retomada dos modelos clássicos, da visão subjetiva e ao
mesmo tempo racional, feitas das linhas da geometria e da proporção racional
presentes nas obras. A figuração aqui engana a jaula, pois deturpa, decompõe,
desalinha.
Jaula é igualmente uma metáfora para pensar no lugar do Museu, essa instituição
das artes que inova, mas também regula; abre-se para o novo ao mesmo tempo
que canoniza e torna rotina.
Jaula é por fim uma referência ao “cubo branco”, uma crítica sensível ao lado
opressivo e ao caráter racista da história e da crítica de arte brasileiras, bem como
ao perfil de monumentalização que ganham as exposições produzidas no país e
que acabam por construir uma história da arte ainda muito colonial, europeia e
masculina.
Nesse sentido, Jaula é a Casa Grande, o trono dos monarcas e seu dossel, a
postura dos dominantes, as próprias amarras e utopias que conformam esse país.
Jaula é nossa limitação cultural, nossa tentativa de racializar o outro e de
entender a branquitude como universal. É essa democracia brasileira incompleta,
que diz incluir quando exclui, secularmente.
Já o trabalho de Daniel Lannes, como seus pinceis irreverentes – esteticamente
sedutores – entra em todas essas estruturas para delas sair: desmonta,
desorganiza, inverte. O artista relê por dentro essa história potencial, que se
inscreve pela contraposição, por ironia fina, através de uma arte que domina o
traço e as técnicas acadêmicas, mas que dá a eles um outro destino. Invade a
Jaula.