Líquen teso: texto crítico [critical essay]: Fernanda Morse
O sensível pensa
Fernanda Morse
Associação simbiótica entre fungos e algas; crosta por cima da casca. Esticado, tenso, inteiriçado, hirto; cimo de monte; duro. Líquen teso diz da intervenção e da natureza, dos polos e territórios por onde circulam estes trabalhos. Camila Leite, Fabiana Preti, Gabriela Melzer, Mariana Rodrigues e Marina Weffort trazem mundos diferentes cujas formas nem sempre têm nome. Em meio a recursos tão heterogêneos é comum a busca no abstrato, nessa camada em que se separa o que se sente, o que se pensa e o que se vê. Entre os tantos caminhos que ali se encontram, há quem se entregue ao fluxo e crie trajetórias orgânicas, abertas; e há quem estique a corda, traçando a rota.
Não nos interessa reiterar o dualismo estanque que separa o sensível do formal. Como já disseram por aí, também acreditamos que o sensível pensa. Assim, organizamos estas obras de modo a favorecer a conversa, num jogo de correspondências entre cor, textura, ordem e ritmo. De repente, o apuro e síntese de Weffort falam com a opulência e a expansão das formas de Melzer. O casear e o couro de Preti chamam a profusão das linhas e tecidos de Leite. As cores frias se tornam quentes e os Sentimentos lunares de Rodrigues preenchem a sala.
Esses caminhos têm história, como aponta Elles font l’abstraction, a exposição com curadoria de Christine Macel e Karolina Ziebinska-Lewandowska apresentada no Centre Pompidou em 2021. Preenchendo lacunas deixadas por certos historiadores da arte ao criarem suas linhagens no domínio da abstração, a mostra reivindica o pioneirismo de inúmeras mulheres no desenvolvimento dessa linguagem através do século XX. Podemos atestar, assim, que artistas tão diversas como Georgina Houghton (1814-1884), Anni Albers (1899-1994), Georgia O'Keeffe (1887-1986), Alma Thomas (1891-1978), Louise Bourgeois (1911-2010), Agnes Martin (1912-2004), Saloua Raouda Choucair (1916-2017) e Etel Adnan (1925-2021) também estão embrenhadas na gênese desta conversa.
Líquen teso é, ainda, a fusão dos títulos de dois trabalhos presentes na exposição. Estudo sobre líquens (2023), de Mariana Rodrigues, integra a pesquisa em torno do que a artista identifica como “pinturas abstratas naturais” — padrões, manchas e cores que se superpõem na natureza e são por ela observados e catalogados durante períodos de imersão na floresta. Teso (2023) é o título do trabalho da série Casear de Fabiana Preti, em que a artista abre casas de botão no couro, deixando fendas coloridas se distribuírem na superfície como notas numa partitura.
Weffort também investiga as fendas. Desenha com o tecido num processo de tecelagem reversa, em que determinada forma é alcançada no desfazer da trama. Como um trompe-l'œil às avessas, a artista explora na bidimensionalidade um material dotado de volume, posicionando no lugar convencionado ao desenho e à pintura um trabalho que beira o escultórico. Já Camila Leite intervém no tecido através do bordado, prática na qual diferentes temporalidades se sobrepõem seja pela aplicação de retalhos do enxoval das suas avós seja pelo tempo que o próprio ato de costurar demanda. Como se fossem feitas de fragmentos e reminiscências da paisagem, essa experiência de embaralhamento da estrutura temporal é evocada, ainda, pela atmosfera onírica das pinturas de Melzer.
Dar contorno ao sonho, bordar o tempo, desfazer a trama. Transbordar a cor, inventar a forma, convocar o tato. Soltar a mão, escolher a dedo. Eis alguns dos princípios que regem a concepção das obras em Líquen teso, a coletiva que abre o calendário de exposições de 2024 da Galatea em São Paulo.