Pietrina Checcacci: táticas do corpo: Texto crítico [Critical essay]: Fernanda Morse
O corpo elevado à paisagem
Fernanda Morse
"Considero todo o meu trabalho uma sequência. Sempre
“Do corpo. Mas que é corpo?” lê-se nas primeiras páginas do Poema sujo de Ferreira Gullar, escrito em 1975 durante o período de exílio do poeta. Na obra, o corpo físico é colocado em questão, reelaborado e reavaliado num momento de fratura no corpo social. Como esse corpo, “esse osso que não vejo”, olha e é olhado em momentos de tensão e censura? E como é que pode ser tão misterioso enquanto forma, cheio de dobras e vincos? O início da carreira de Pietrina Checcacci viu irromper a ditadura militar no Brasil, o que não passou despercebido em seu trabalho. Se a princípio o seu interesse pela figura humana se manifestava na representação de grupos de pessoas, como trazido na epígrafe, essa abordagem dizia respeito justamente ao corpo na esfera social. Passando o tempo, a artista deslocou-se na direção da pergunta do poeta, mergulhando nas minúcias do corpo humano — mais especificamente, o feminino.
Os trabalhos Sob o signo de câncer e Família brasileira da série O povo brasileiro (1967-1968), conhecidos como “estandartes”, e a instalação A novela (1965-1967) correspondem, por sua vez, ao período inicial da produção de Checcacci, quando o corpo é trazido em seus agrupamentos, inserido na vida política, reproduzido na cultura de massa, dividido entre jogos de aparência e conflitos morais. É clara a conversa com pares de geração como o Rubens Gerchman de Não há vagas (1965) e a Anna Maria Maiolino de O herói (1966). A artista retoma essa abordagem sessenta anos mais tarde com a série de “flutuantes”: Yes, nós temos bananas e otras cositas más (2022) e Juntos e misturados (2024) — trabalhos que, diga-se de passagem, trazem algo de Glauco Rodrigues, outro expoente da pintura no Rio de Janeiro dos anos 1960.
Na transição para a década de 1970, passa a dar ao corpo humano a dimensão de paisagem. Em texto de 1973, o crítico de arte Roberto Pontual comenta: “A uma série de pinturas Pietrina intitulou Evaterra, ali a pele do corpo correspondendo à pele da terra. Propunha com isto a sutileza de inverter um velho princípio: já não era a terra que se dava como fonte do corpo, mas o corpo que se apresentava como matriz da terra. A paisagem era o corpo.” Trabalhos presentes na exposição, como Evaterra (1971), Carnações (1982) e A doçura dos corpos (2011), constatam a continuidade dessa pesquisa. No entanto, o que é esse corpo trazido por Pietrina em meio aos seus tantos usos e figurações que se instauram na arte brasileira concomitantemente aos primeiros anos de sua trajetória? Ela que começou na Escola Nacional de Belas Artes estudando pintura, aprofundando-se tecnicamente nessa linguagem tão questionada por certas correntes artísticas da época, por sua vez interessadas muito mais pelos objetos, pelos elementos do mundo e pela ação mesma do corpo sobre eles do que pela sua representação.
A conversa de Pietrina com a tradição pictórica também se demonstra em títulos como Carnações. No vocabulário das artes visuais, o termo se refere à representação da pele humana. A forma como um artista desenvolve a carnação em seu trabalho já teve uma tal importância que podia ser tomada pela crítica de arte acadêmica, por exemplo, como critério para avaliação dos seus atributos enquanto colorista. No caso de Pietrina, o trânsito entre tons de laranja, marrom, ocre e vermelho traz densidade e expressividade às partes do corpo que retrata. É evidente o domínio da artista sobre as nuances entre essas cores e a incidência da luz, ao mesmo tempo que compõe uma couleur chair muito própria e bem mais afeita à temperatura dos trópicos, distante do rosa preponderante na carnação dos pintores europeus. O termo ainda se conecta mais especificamente com o léxico da arte sacra e da estatuária barroca, referindo-se ao processo de reproduzir, de forma verossímil e dramática, o efeito da carne e da pele humana nas esculturas dos personagens bíblicos. Tal uso da palavra ganha interesse aqui ao contrastar com a sensualidade e a distorção das formas exploradas por Checcacci. O corpo, enquanto assunto, é sagrado em sua obra, mas a minúcia com a qual ela o desdobra e o desvela para o mundo alinha-se à esfera da profanação.
Já a dimensão erótica dessa pele que se mostra muitas vezes foi negada pela artista.[1] Questão de censura, talvez?[2] Em todo caso, trata-se de um aspecto presente na pintura de muitas artistas brasileiras ativas na época, alinhando-se às reivindicações de reconhecimento da mulher enquanto sujeito desejante trazidas no vento da segunda onda feminista que emergiu nos Estados Unidos na década de 1960. Viu-se então a mulher representando o corpo da mulher em uma multiplicidade de formas até então inédita na arte brasileira — Wanda Pimentel, Teresinha Soares e Regina Vater são exemplos preciosos dessa virada.[3] No entanto, a aceitação desse exercício de liberdade não era tão simples assim, o que se infere também pelo fato de Pietrina elidir o seu primeiro nome na assinatura de grande parte dos seus trabalhos produzidos até certa altura da década de 1970, deixando apenas: Checcacci.[4]
A crítica percebe, ainda, diversas outras referências e diálogos na sua obra, tal como uma conexão com o hiper-realismo que surgia no mesmo período. Em entrevistas, também negou uma vinculação voluntária a essa corrente: “Tampouco sou hiper-realista. Não parto da fotografia e, sim, do esboço. Não tenho nada contra o hiper-realismo, mas faço questão de não ser.”[5] Já pelas distorções causadas por eventuais detalhes ultra-aproximados do corpo, além de composições que unem elementos descontextualizados (a corda, a borboleta), pôde também ser relacionada a certas abordagens do surrealismo, sobre o que comenta: “Faço questão de permanecer no real. Sei que estou numa corda bamba, muito próxima do surreal. Mas estou atenta, observando o ser humano.”[6]
Então, de novo, o que é esse corpo humano de Pietrina? Também não é o corpo do abjeto,[7] do obsceno[8] e do informe,[9] para evocar o debate trazido pela revista norte-americana October na década de 1990. Não é a mesma pele exposta à violência retratada por Nan Goldin, nem o corpo pastiche de Cindy Sherman, tampouco a matéria escatológica de Andres Serrano. Se o informe consiste na ruína da boa forma, se busca “rebaixar e colocar em desordem qualquer taxonomia”,[10] o corpo humano para Pietrina, mesmo quando colocado em tensão erótica, mesmo quando desprovido das suas partes nobres (vê-se muito mais pé do que cabeça), é um corpo que se eleva com a arte, ou que a sua arte quer elevar.
[1] “Minha arte não é erótica. Um dedo é apenas um dedo.” lê-se no título de entrevista publicada em 26.04.1975 ao jornal Última hora.
[2] A pesquisadora Talita Trizoli comenta na tese “Atravessamentos feministas: um panorama de mulheres artistas no Brasil dos anos 60/70” (2018, p. 245) o fato de a reprodução de uma obra de Pietrina ter sido censurada na ocasião em que seria publicada em matéria da revista Veja em 1974.
[3] A recente exposição “Mulheres na Nova Figuração: corpo e posicionamento”, com curadoria de Camila Bechelany e Gustavo Nóbrega, dá a ver a pujança da transformação em curso na época.
[4] Trizoli ainda diz: “Checcacci, por exemplo, não aceitava tirar fotos quando jovem para jornais e outros meios de divulgação de seu trabalho, com receio de ser reduzida ao estereótipo da ‘artista jovem e bela’, postura essa que se estendeu inclusive à sua assinatura nas obras — ela afirma que assinava seus trabalhos apenas com o sobrenome, ocultando seu gênero por medo de preconceitos.” (2018, p. 242).
[5] Diário de Notícias, 12.09.1974.
[6] O Estado de São Paulo, 8.12.1973.
[7] “Uma categoria de (não)ser definida por Julia Kristeva como o que não é nem sujeito nem objeto, mas o que vem antes daquele (antes da separação completa da mãe) ou depois deste (como um cadáver entregue à condição de objeto).” Hal Foster no ensaio "Obscene, Abject, Traumatic" publicado na revista October 78 (1996, p. 112, tradução da autora)
[8] “’Obsceno’ não significa ‘contra a cena’, mas sugere um ataque à cena de representação, ao anteparo-imagem." (Idem, p. 113, tradução da autora)
[9] “No projeto de Bataille, que ele chama de ‘ateológico’ ou ‘escatalógico’, o informe é algo como um primeiro princípio que define o que é excluído da metafísica ocidental. O informe é entendido como algo que vai desfazer categorias.” Yve-Alain Bois em entrevista "Down and Dirty: “L’informe” at The Centre Georges Pompidou", Artforum, summer 1996, disponível em: https://www.artforum.com/features/down-and-dirty-linforme-at-the-centre-georges-pompidou-202066/ (tradução da autora).
[10] « L’informe consiste à déclasser, au double sens de rabaisser, de mettre du désordre dans toute taxinomie, pour annuler les oppositions sur quoi se fonde la pensée logique et catégorielle. » Bataille apud Krauss e Bois em texto de apresentação da exposição L'informe : mode d'emploi, apresentada no Centre Pompidou em 1996.