Bahia afrofuturista: Bauer Sá e Gilberto Filho: Textos: Ayrson Heráclito & Beto Heráclito
O ANTIRRACISMO É O LUGAR DO FUTURO
Ayrson Heráclito & Beto Heráclito
A ideia de afrofuturismo remete a um campo complexo e polêmico de posicionamentos intelectuais, políticos e artísticos dissidentes. O termo costumeiramente está associado com a ideia de antirracismo, ancestralidade, futuro e tecnoculturas. As práticas do afrofuturismo são movidas pela constatação da invisibilidade histórica e ideológica do negro nas sociedades ocidentais, demonstrada na ausência de representatividade e protagonismo negros na literatura, nas artes, nas ciências, na história e nas narrativas de ficção científica. Nesse contexto, o afrofuturismo sinaliza para a existência de uma humanidade negra, em um mundo não determinado pelo racismo e pela opressão. Um mundo pós-racial.
O termo afrofuturismo foi cunhado pelo escritor Mark Dery em 1994 (Black to the future) e difundido por pensadores e artistas afro-americanos que criticam a escravização enquanto mecanismo de apagamento de vidas negras. Ele informa um conjunto de práticas intelectuais e artísticas, orientadas para a construção de realidades não marcadas pela supremacia racial.
Uma visão peculiar desse debate encontramos no teórico Achille Mbembe, em seu texto Afropolitanismo (2005). Para o autor camaronês, existe uma modernidade africana pré-colonial, que foi devastada em sua materialidade e memória pelas práticas colonialistas. Por essa ótica, a visão afrofuturista consiste em desvelar a modernidade em um passado ancestral, presente ainda em espaços sociais que lhe são reminiscentes, a exemplo dos territórios sagrados das religiões afro-diaspóricas e comunidades quilombolas.
A exposição Bahia afrofuturista: Bauer Sá e Gilberto Filho, ao promover o diálogo entre dois artistas negros com poéticas distintas, busca apresentar diferentes abordagens dessa nova estética, comprometida com o ativismo negro. As linguagens eleitas pelos artistas — a fotografia e a escultura — servem como estratégia para experimentação de conceitos como a corporeidade e a espacialidade em perspectiva afirmativa e afrocentrada.
Bauer Sá (1950) faz parte da tradição de negros baianos que fizeram carreira enquanto fotógrafos ou fotojornalistas. No entanto, o que é peculiar na sua produção é a inserção da sua fotografia em um refinado circuito de instituições e coleções de artes visuais, circuito esse que era, diga-se de passagem, majoritariamente branco no Brasil. Na Bahia, Bauer Sá e Mário Cravo Neto são contemporâneos e fazem parte desse mainstream que contribuiu para elevar a fotografia ao status de obra de arte, embora o racismo tratou de construir trajetórias e privilégios distintos para ambos.
Uma primeira questão deve ser destacada ao se pensar o solitário processo criativo de Bauer: a forma como o corpo negro é politicamente atravessado pela condição de sujeito nas suas elaboradas construções imagéticas. Bauer é um dos pioneiros, enquanto artista negro, da arte antirracista na Bahia. Seu trabalho é uma crítica contundente à longa tradição etnográfica de representação do corpo negro enquanto corpo-coisa (corpo escravizado). Dessa forma, podemos vinculá-lo às inquietações afrofuturistas.
Suas imagens são construídas utilizando elaborações metodológicas sintéticas e precisas, com o intuito de apurar o seu discurso visual. Isso explica a opção pela fotografia em preto e branco, técnica aprendida enquanto assistente no laboratório do seu pai. Todo um controle formal está a serviço do apuro narrativo das imagens. Geralmente os seus trabalhos articulam dois elementos — um modelo negro e um objeto precisamente selecionado — que performam uma ação provocativa e política.
O seu talento produz padrões visuais minuciosamente construídos e elaborados. A modelagem da luz sobre o fundo preto gera um brilho suave na superfície, de modo a revelar na pele negra um raro jogo de claro e escuro. Tal realização estética representa um desafio técnico na apreensão da imagem do negro e sua fotogenia. É recorrente, no senso comum, a afirmação racista de que o negro “queima o filme”. Bauer destrói essa ideia infame. A realização do seu sofisticado processo de criação justifica a opção pela foto de estúdio, onde é possível se ter um controle rigoroso sobre a imagem produzida.
O corpo negro em Bauer, em fina ironia à tradição racista ocidental, também está nu. No entanto, a nudez nas suas fotos não coisifica nem hipersexualiza o corpo negro. A nudez em sua obra é cortante, política, revolucionária. É prerrogativa de uma humanidade negra que denuncia desigualdades e reivindica a condição e o lugar de sujeito àqueles corpos insubmissos. Bauer Sá faz foto-guerrilha. Sua estética pode ser compreendida pela “tradição radical negra”, onde o corpo-coisa cede lugar ao corpo-imagem, promovendo a morte da fotografia etnológica, tão comum na Bahia. Essa postura lhe confere um lugar de destaque, mesmo que à margem, na história da arte baiana. A sua obra impacta pela violenta objetividade das mensagens que elas veiculam. Sem ser panfletário, o ativismo artístico de Bauer Sá desconstrói e constrange velhas representações racistas. As suas imagens, de rara poética insurgente, revelam um obra que instaura uma crítica ao presente, como sugere fabulações de um futuro onde a humanidade negra é possível.
Gilberto Filho (1953) iniciou o seu fazer artístico como aprendiz de marceneiro na oficina de seu pai, na cidade histórica de Cachoeira, no recôncavo baiano. Essa cidade foi outrora a sede da primeira aristocracia rural da América, condição que lhe converteu em num lugar estratégico para a confluência de populações africanas oriundas do escravismo. A grande concentração de afrodescendentes transformou a cidade em uma importante referência da cultura afro-brasileira. Isso justifica a presença de inúmeros artistas negros que produzem esculturas em madeira e que gozam de prestígio pela qualidade de suas obras, normalmente representando santos, deidades do candomblé e outros temas populares.
No panorama artístico cachoeirano, a obra de Gilberto Filho se destaca por se distanciar completamente das temáticas dos seus conterrâneos. A sua produção veicula uma rasura na concepção de temporalidade. Ele evade das noções de passado e presente ocidentais, colocando em suspensão a ideia linear de tempo através de uma imaginação disruptiva que constrói cidades que são devaneios futuristas. Gilberto ressignifica o futuro em uma modernidade ancestral, concebida enquanto um sistema de saberes e crenças do passado que orientam o entendimento do mundo.
Na paisagem colonial da cidade de Cachoeira, o artista promove um estranhamento poético ao construir em pau d’arco, jacarandá, sucupira, angelim, louro e outras madeiras de lei, megalópoles afrofuturistas. O artista também faz uso de madeira de demolição para criar o futuro sobre as ruínas do passado. Um passado aparentemente superado em construções arquitetônicas grandiosas, que lembram as cidades das histórias de ficção científica.
Em sua manufatura, reconhecemos diversas técnicas tradicionais para se trabalhar a madeira, tais como marchetaria, entalhes e recortes. Com o auxílio de formões, tornos, serras e martelos, ele vai dando vida a conjuntos de arranha-céus, laboriosamente trabalhados em suas torres, frontões, cúpulas, varandas, esquadrias, pilotis e incontáveis pavimentos. Suas construções, de apurado rigor geométrico, não devem ser confundidas com maquetes, pois, como nos informa o artista, suas obras “não são cópias de prédios”.
A sua escala chega a medir 2,5m de altura, se estabelecendo espacialmente de forma instalativa, e nos transportando para lugares imaginários e distantes, diluindo prédios e fachadas em uma quase abstração. Gilberto inventa mundos, se impondo no espaço onde os arranjos escultóricos são montados. É curioso contemplar a contemporaneidade das suas esculturas futuristas nos velhos salões coloniais da prosaica cidade de Cachoeira.
À primeira vista, parece contraditória a utilização da madeira para a construção de mundos futuros, visto que esses sempre foram associados aos novíssimos materiais sintéticos e às tecnologias de última geração. No entanto, se olharmos a questão pela perspectiva da modernidade ancestral africana, talvez o procedimento artístico de Gilberto Filho fique mais compreensível. Por essa concepção, os elementos da natureza estão carregados de energias que agem sobre a ordem do mundo, odus e destinos. Por isso, compreendemos que mora em cada toro de madeira uma memória cósmica, apontando caminhos e orientando futuros ecologicamente harmônicos. Portanto, para a construção de um futuro que supere as desigualdades do presente, nada melhor do que se orientar por essa sabedoria ancestral. Só assim será possível um mundo absolutamente novo.
As cidades em Gilberto, por outro lado, acenam para além das utopias de equidade social do modernismo. Suas construções parecem desabitadas, à espera dos ideais de justiça e igualdade que estão por vir e que irão promover uma horizontalidade efetiva das estratificações sociais. O artista nos convida a sobrevoar uma sociedade antirracista, onde as suas esculturas servem de inspiração para narrativas afrofuturistas. Uma urbe que caiba a humanidade negra, uma Wakanda brasileira.
Pensar a produção de Bauer Sá e Gilberto Filho é um exercício de compreensão de distintos enfrentamentos antirracistas, nesse momento em que estamos unindo esforços para reescrever a história da arte brasileira de forma diversa e inclusiva, evidenciando o protagonismo de negros e indígenas. Rompendo com estereótipos impostos pela sociedade ocidental, a arte negra vem ganhando espaços relevantes e o artista negro rompendo a secular invisibilidade ideológica, se afirmando como autor de uma poética artística necessária para se pensar a cultura no Brasil.
“Saberemos convencer
a esperança a não
nos abandonar enquanto
o mundo acontece?
Conseguiremos empurrá-la
montanha acima,
sob o sempre risco de seu peso
despencar inteiro sobre nós?”
Ricardo Aleixo