Marilia Kranz: relevos e pinturas: Texto crítico: Fernanda Morse
Marilia Kranz: passional como um postal carioca
Fernanda Morse
Nesta exposição se vê passagem. A passagem de uma pesquisa inicial a uma obra sólida, de uma jovem artista a uma criadora, de um paradigma construtivo a uma figuração onírica, de cores sóbrias e fechadas a uma paleta ampla e aberta. É isso acompanhar uma trajetória: não tanto ver em retrospectiva, mas estar atento às passagens, ao que elas dizem sobre o desenvolvimento de uma obra. Marilia Kranz era não só uma artista em movimento, mas uma mulher em movimento – e isso transparece em sua produção. Trazendo ao seu trabalho cada vez mais o calor da cidade do Rio de Janeiro, não tinha pudor em transparecer a sua pulsão de vida, é a mulher que diz: “como eu aprontei!”.
Embebendo o espectador na sensualidade das suas flores e frutas exuberantes, a porção da obra de Marilia Kranz "passional como um postal / carioca" – que, como o poema de Ledusha que nos empresta esse verso, data dos idos anos 1980 – tem um magnetismo próprio. As pinturas Forma-flores (1985) e A montanha e a fruta (1989) que o digam. Na primeira, as flores são o centro da tela, sobressaindo diante de uma paisagem difusa, cinza-azul e desimportante perto dos filetes intumescidos e avermelhados que despontam das pétalas em degradê amarelo. Na segunda, diante dos cumes da montanha se projeta a fruta colorida e aberta, traçada em linhas sinuosas que criam camadas até o centro rosado e sugestivo.
Até passar por essa comoção erótica da pintura, que a aproximou de pesquisas como a de Georgia O’Keeffe, Marilia Kranz explorou outros temas e materiais mais rígidos, como se vê em Crepúsculo (1968), que faz parte de uma série de relevos elaborados com recortes de madeira pintados sobre Eucatex apresentada em sua primeira individual, na Galeria OCA, no Rio de Janeiro, em 1968. O crítico de arte Frederico Morais, na monografia que escreveu sobre a artista, vê nesses “recortes geométricos”, apesar de abstratos, “resíduos figurativos”. Vê os “círculos e semicírculos como se fossem olhos e bocas abertas” recriando “a Gestalt da figura humana”. Já na série das estereoformas – cujo próprio nome indica sua tridimensionalidade –, Morais diz não haver qualquer “resíduo figurativo”. Scheat – estereoforma (1969), intitulada tal como a segunda estrela mais brilhante da constelação de Pegasus, é um quadro-objeto moldado em poliuretano rígido e tingido com tinta automotiva, constituído a partir de recursos técnicos pouco usuais à época. Alternando entre formas côncavas e convexas e explorando cores variadas, Morais considera que, nesta série, Marilia Kranz pôs em prática o trinômio “arte-tecnologia-novos materiais” de forma pioneira.
A cor, elemento importante dentro da produção de Marilia, também nos ajuda a perceber as passagens. Entre a pintura Sem título (197) e Angra I (1979) vemos não só a correspondência temática – estudo de linhas retas e curvas, formas abstratas e geometrizadas em uma paisagem indefinida – mas o uso de cores mais fechadas e mais sólidas em relação aos degradês que tanto explora nos anos seguintes e que nunca mais saem das suas telas. Passado o ápice da sensualidade e das figuras escultóricas que habitavam as suas paisagens – como em Paisagem na escultura (1981) e Aterrissando (1982) – vemos em obras mais maduras, como Fim da guerra (2003) e Fim de um dia (2006), um certo retorno a tons sóbrios ao serem priorizados os degradês de cinza e azul, que se correspondem com o caráter sintético e econômico que tomam aqui as suas formas e figuras.
Com cenários oníricos e paisagens solenes, a pintura de Marilia por vezes foi aproximada àquela dos metafísicos que influenciariam o surrealismo, como Giorgio de Chirico. Não à toa ocorre essa comparação. Em diversas ocasiões, a artista diz ter resolvido ou iniciado uma pintura ainda enquanto dormia. Para ela, a ligação do sonho com a criação não ocorria apenas como exercício metafórico, mas era um processo ativo, transposto direto do seu inconsciente. Eis a fala de uma artista em tempo integral, que já não separa a arte da vida, o dentro ou o fora, o sono ou a vigília, sem saber se isso é mesmo um presente:
Como mulher e profissional tive que misturar tudo: tinta, filhos, lista de compras... nunca soube o que é a tal ‘paz de espírito’ para criar, trabalhar. Aprendi a fazer tudo junto, no tumulto. Não sei até onde a minha vida é meu trabalho, ou meu trabalho é minha vida. Trabalho até dormindo, quantas vezes resolvi um quadro nos meus sonhos, ou sonhei com outros prontinhos. É ao mesmo tempo uma benção e um tormento.
Daqui, Marilia, diríamos que é uma benção.