BRUNO NOVELLI: Tudo se transforma na terra: Texto crítico: Thierry Freitas
Tudo se transforma na terra
Ao adentrar o ateliê de Bruno Novelli (Fortaleza, CE, 1980), no centro de São Paulo, encontramos imagens diversas que nos dão preciosas pistas sobre seus interesses. Em uma mesa de centro, estão espalhadas publicações sobre pintura e História. Nosso olhar passeia por títulos como A História da beleza, de Umberto Eco e A voz do silêncio, de Helena Blavatsky, enquanto outros livros, abertos em páginas aleatórias, nos permitem observar reproduções de pinturas como “O Juízo Final”, de Hans Memling (entre 1467 e 1471), uma gravura de 1878 representando a deusa indiana Kali e ilustrações botânicas feitas pela bióloga Marianne North em sua viagem ao Brasil no século XVIII.
Em frente a esse arcabouço de registros, repousa na parede um quadro de fundo preto com a figura de uma ave ricamente colorida. É uma das pinturas de Chico da Silva, artista cujos pássaros e monstros feitos em profusão no bairro do Pirambu, na periferia de Fortaleza, tomaram os consultórios, bodegas, casas e o imaginário de quem vivia ou passava pela cidade entre 1960 e 1985.
Esses objetos explicitam como Novelli tem se utilizado de uma vasta gama de referências — da arte do Renascimento italiano à arte dita "popular", do caderno de mitos à cultura de rua — para compor um complexo corpo de trabalho, capaz de unir com maestria grande esmero técnico e cenas dotadas de inventividade.
Em sua obra, vivem seres antropomorfizados e zoomórficos, ricos em padronagens, representados em meio a um ambiente exuberante e psicodélico.
O artista nasceu e passou a primeira infância em Fortaleza, convivendo com a luz ofuscante do Ceará e, claro, com os seres fantásticos de Chico da Silva. Na juventude, já em Porto Alegre, integrou o coletivo de intervenção urbana "Upgrade do Macaco" que, a partir de 2003, ganhou projeção na cena gaúcha com grafites e ações nas ruas. A urbe, com suas paredes infinitas, talvez explique a propensão de Novelli pelos grandes formatos, presentes desde suas primeiras pinturas solo.
Nos trabalhos da década de 2010, dotados de um traço menos físico e sob grande influência do design gráfico, área por onde já se aventurou, o interesse pelos reinos animal e vegetal já era explícito. Novelli, à época, entremeava o biológico a repetições geométricas associadas ao universo digital ou a índices da cidade. Em meio a blocos de tijolo, brotavam, por exemplo, bananeiras e espadas de São Jorge[1] e, junto a uma carranca, flores e frutas flutuavam em um ambiente de cores sintéticas[2].
Mais de uma década após pinturas como essas, sua produção assumiu a predileção total pelo tema da natureza e, hoje, se constitui em um minucioso exercício de complexificação e fabulação do mundo orgânico. Seus personagens apresentam-se em primeiro plano, muitas vezes em escala semelhante à do corpo do observador, e estão ou em posições de ataque, empunhando flechas, ou em convivência com outros seres.
As imagens de Novelli resultam em figurações de um meio ambiente sinestésico e fantástico, e cada vez mais têm sido contaminadas por vivências recentes do artista na floresta amazônica e junto aos povos originários. Ainda em 2017, se aproximou do coletivo de arte indígena MAHKU, grupo de artistas Huni Kuin cujo corpo da pintura se constitui principalmente por representações das tradições e Histórias desse povo e por traduções visuais das mirações provocadas a partir da cerimônia de nixi pae, na qual utilizam o chá de potencial psicodélico conhecido comoAyahuasca.
Embora sua produção recente tenha o MAHKU como grande referência — e já tenha exibido seus trabalhos em diálogo com os do grupo —, Novelli produz a sua obra com base em uma mitologia própria composta por panteras, cobras, lagartos, dragões, peixes, macacos e outras criaturas.
Com grande domínio compositivo, cria esses seres de modo a destacar sua voluptuosidade e imponência. Suas imagens se situam em um tempo suspenso, com cenas que nos remetem a um passado distante, não vivido pelos seres humanos, onde vagam por um planeta ainda pouco explorado espécies com características próximas a de um imaginário coletivo da pré-história. Ao mesmo tempo, essas mesmas imagens podem ser interpretadas como uma ficção de um ambiente futurista ainda não descoberto.
No grupo de grandes telas que o artista apresenta na Galatea, Novelli se permite explorar composições com áreas mais abertas, em que a paisagem ao fundo chama mais a atenção do que em trabalhos anteriores, auxiliando na sensação de imensidão do espaço. Apesar de extremamente rica em detalhes, sua pintura tem o círculo luminoso do sol como um ponto focal do arranjo, pois além de isolado no espaço, é a cor solar que costuma tingir a maior parte dos elementos da pintura.
Em seu bestiário, é comum que os animais — muitos deles nomeados — apareçam em diferentes telas, contribuindo com o sentido de continuidade e coesão de sua obra. Esses seres, muitas vezes, estão envolvidos em situações de batalha, atacando uns aos outros. A figuração desses embates, no entanto, colabora com a impressão de fidedignidade ao mundo real, uma vez que o conflito é um processo corriqueiro na natureza.
A ficção das telas permite que o artista misture uma infinidade de ecossistemas e biomas, e obviamente crie tantos outros: as padronagens encontradas nas plantas que habitam as paisagens são, por vezes, replicadas nos corpos dos personagens, causando um efeito de camuflagem que colabora para a sensação de uma integração total entre diferentes formas de vida.
Mas, por que a natureza e a paisagem, estes grandes assuntos da História da arte, seguem sendo um tema tão relevante na atualidade?
O processo modernizador da História fez com que o ser humano passasse a adotar uma postura de hegemonia e superioridade em relação a outras formas de vida, muitas vezes assumindo uma interação integralmente cientificista diante de outros tipos de existência. Hoje, há um esforço social em reorganizar esse paradigma e, cada vez mais, temos nos voltado a entender diferentes tipos de inteligência a partir de uma relação de maior alteridade com outras espécies.
Embora atue no campo quimérico, a produção de Novelli se situa nesse espectro de pensamento por protagonizar e dar ânimo a um universo imediatamente reconhecível como vivo e natural. Isso explica também a inserção cada vez mais frequente de seu trabalho em exposições coletivas que têm a ecologia como as mostras Siamo Foresta (Triennale Milano, Milão, 2023) e Les Vivants (Tripostal, Lille, 2022), ambas organizadas pela Fondation Cartier pour l'art contemporain.
O apontamento para um grande elo e a interdependência entre as coisas, tomado do mundo real e transposto para a ficção das telas, é o grande pressuposto da investigação artística de Novelli. Trata-se de um artista deglutidor, interessado pela vida em suas mais diversas manifestações. Ao nosso redor e em suas pinturas, tudo está sempre em constante transformação.
THIERRY FREITAS (São Paulo, 1992) é Historiador da arte e curador da Pinacoteca de São Paulo.
[1] Canteiro (2015), acrílica sobre tela. Disponível em: https://bruno9li.com/works_full_size/canteiro.html (acessado em 17.09.2024).
[2] Cachoeira flor de bananeira (2017), acrílica sobre tela. Disponível em: https://bruno9li.com/works_full_size/cachoeira_flor_de_bananeira.html (acessado em 17.09.2024).