Daniel Lannes: paraísos: Texto crítico: Tomás Toledo

11 Maio - 17 Junho 2023 Galatea São Paulo
Apresentação

Paraísos artificiais, paraísos perdidos 
Tomás Toledo

 

Ao adentrar na mostra Paraísos, de Daniel Lannes, o visitante se depara com um cortinado branco translúcido, que convida a uma atmosfera nebulosa, intimista e onírica. Nesse vestíbulo de bruma, somos interpelados por dois olhares distintos, porém igualmente magnéticos. O primeiro advém de um pequeno retrato feito a partir de uma fotografia de João do Rio, o cronista das ruas e da boemia carioca. Pintado com ares de dândi tropical e rosto inclinado à esquerda, reforçando o aspecto inquisitivo de sua mirada, parece convidar quem lhe atravessa para uma aventura luxuriante, o que Lannes reitera na escolha do premonitório título da pintura: Aquele que você vai querer beijar no final da noite


O segundo olhar, torpe e sedutor, vem de um marinheiro, pintado por Lannes a partir de uma fotografia impressa em uma revista francesa. Entre a foto e a pintura pode-se perceber uma representação, não exatamente intencional, de Querelle de Brest, o marinheiro bissexual, sedutor e criminoso, do livro homônimo de Jean Genet, que ganhou imagem na película Querelle, de Rainer Fassbinder, filmado como um sonho (ou pesadelo) erótico, permeado por uma luz alaranjada e roseada que também cobre a pintura do marinheiro de Lannes.


Ao atravessar o cortinado, encontramos mais dois olhares, ambos de pequenos retratos do poeta Fernando Pessoa, figura chave nessa mostra que, por sua vez, bebeu do universo cambaleante, entorpecido e decadentista explorado por Álvaro de Campos – um dos heterônimos de Pessoa – em Opiário


O poema é uma narração em primeira pessoa que se passa em um navio – “No Canal de Suez, a bordo”em que o eu lírico de Álvaro de Campos discorre sobre os descaminhos de sua vida permeada pelo do uso do ópio, em um fio narrativo dispersivo, em que se mescla o deslocamento territorial real da viagem de navio com um deslocamento simbólico, misturando o tempo cronológico com a temporalidade escapista e entorpecente do ópio, algo enunciado na primeira estrofe:


“É antes do ópio que a minh’alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.”

 

É justamente nessa fissura espaço-temporal desejada no último verso da primeira estrofe que o conjunto de pinturas da mostra parece assentar-se. As pinturas evocam cenários, fantasias, personagens e atmosferas de tempos, naturezas e culturas distintas, mas que parecem estranhamente familiares entre si e à vontade nesse universo-paraíso-delirante criado por Lannes. Essa capacidade de habitar muitos lugares em um e de coexistência de diversas percepções da realidade está bastante atrelada ao tipo de consciência expandida propiciada pelo ópio, algo que Walter Benjamin comenta de forma precisa em seu texto Haxixe em Marselha: “O fumador de ópio ou de haxixe tem a experiência do olhar que é capaz de encontrar cem lugares diferentes num único”.  


Continuando o percurso pelo cubo branco da galeria, na parede da esquerda vemos três grandes telas que remetem ao gênero clássico da pintura da figura humana na paisagem. As três, como também as demais telas da mostra, congregam operações pictóricas típicas da produção de Lannes: o uso eloquente das cores; o embaralhamento entre os planos da figura e do fundo; o esgarçamento da fronteira entre a abstração e a figuração; o uso constante ora de saturação e transparência, ora de massa emplastrada de tinta e trama da tela à mostra. Operações tais que resultam em pinturas que carregam a energia do gesto corporal, mas ao mesmo tempo que relevam um controle e sutileza de ordem mental. 


Na primeira delas, Meditação, vemos uma cena de teor clássico, um homem sentado contemplando um lago barrento ou um abismo existencial. Na segunda, Opium, uma sereia diabólica e lisérgica emerge de um oceano subterrâneo ou de um paraíso perdido. Na terceira, cria um pot-pourri bem-sucedido de citações: a cena é uma apropriação do álbum de viagens da família real brasileira, mais especificamente de uma fotografia de Dom Pedro II e sua família no Egito ao sopé da Esfinge. O peculiar grupo da excursão real é observado por um autorretrato de Lannes, que surge de costas, descamisado, vestindo uma calça estampada e com os braços amarrados por cordas de Shibari, criando esta pintura de paisagem ao mesmo tempo histórica, autobiográfica e fetichista. 


Na parede da direita, a paisagem dilui-se e as figuras ganham o primeiro plano, em uma sequência de seres, entre referências históricas, fictícias, mitológicas e do universo pop. São quatro composições com interpretações abertas, permeadas por sugestões e incompletudes, algo que se reflete na própria fatura das pinturas, que não dá conta da representação fidedigna e da totalidade narrativa, e deixa algo a ser completado pelo olho e elaborado pela imaginação do espectador.


A primeira pintura dessa sequência tem como pano de fundo uma mistura de tons de verde, aguados e escorridos pela tela que quase se mesclam ao homem visto de costas com o braço direito arqueado e falo pronunciado. Há algo de pintura rupestre na composição, que é reforçado pelo título, Bisão, animal muito presente em diversas pinturas rupestres, como as da Caverna de Altamira, algo que confere certa bestialidade ao homem representado. Essa pintura de teor arquetípico pode nos levar a outra livre associação, que são as representações de Príapo, deus grego da fertilidade, normalmente pintado e esculpido com falo ereto, ou aos amuletos fálicos da Roma Antiga.

 

Em seguida, temos duas pinturas correlatas; em ambas são representadas figuras aquáticas, no limiar entre o humano e a mitológica sereia, que surge novamente no panteão do paraíso de Lannes. Transparências latejantes tem seu título emprestado da sétima estrofe de Opiário


“Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.”

O fundo da pintura é estruturado por uma composição geometrizada que configura uma espécie de piscina ou aquário, contrastando com o corpo sinuoso e sensual que afunda na massa aquática, sucumbindo ao ópio. A tela à esquerda mostra o que poderia ser o desdobramento dessa imersão marinha, como se o corpo fosse perdendo sua natureza humana em um processo de zoomorfização até alcançar o estado sereia. Essa ambiguidade surge também na quarta pintura da sequência, Asas do Desejo, que mostra um anjo ou um anjo caído, em uma clara referência ao filme de Wim Wenders , amalgamado numa massa de cores emplastrada na tela que compõe essa figura-fundo. 


O tema do ópio e de outros entorpecentes, como o álcool e o haxixe, foi abordado e elaborado não somente por Pessoa, como também por outros escritores e pensadores do século 19 e começo do 20, como Thomas de Quincey, Camilo Pessanha, Walter Benjamin e Charles Baudelaire. A pintura que se encontra na parede do fundo da galeria, intitulada Vadum Monialium – “vau das freiras”, em latim – é a composição mais amorfa, onírica e entorpecida da exposição. É a que mais flerta com a abstração, com a dissolução e com a desassociação. Segundo o artista, o desejo inicial era representar um cardume de freiras, nadando em vórtice com suas vestes numa massa azul translúcida e oceânica. Na pintura há um único índice dessa intenção, um pequeno vislumbre do rosto de uma freira vestindo seu acessório de cabeça, os demais momentos da tela são deliciosos devaneios formais. Nesse sentido, esta é uma tela bastante eloquente para pensarmos no embaralhamento de temporalidades e localidades e na explosão dos contornos tanto no campo simbólico quanto no pictórico.


Baudelaire em seu incontornável Paraísos artificiais elaborou de forma complexa o tema do ópio e criou metáforas imagéticas potentes sobre este universo. Em um dos trechos do livro, discorre sobre as qualidades estéticas e sensoriais do ópio que aqui tomo emprestado para iluminar as interpretações possíveis sobre o corpo de obras de Daniel Lannes presente na exposição:


"O ópio dilata o que contornos não tem mais,
Aprofunda o ilimitado,
Alonga o tempo, escava a volúpia e o pecado,
E de prazeres sensuais
Enche a alma para além do que conter-lhe é dado."
Installation Views
Obras