Mucki Botkay: janelas imaginárias: Texto crítico: Leonel Kaz
MUCKI: PINTURAS COM MIÇANGAS
A mata agita-se, revoluteia, contorce-se toda e sacode-se!
A mata hoje tem alguma coisa para dizer
Manuel Bandeira
Tal qual escreveu o grande poeta pernambucano, a obra de Mucki é feita de mata: contorcida, sacudida, agitada, com muita coisa a dizer. É o que propõem os fios entremeados, as linhas difusas, tudo bordado sobre tela, como pintura — pintura feita sem tinta, mas com um material que toca a alma brasileira: a miçanga.
A palavra “miçanga” teria vindo de “masanga”, termo de origem africana que significa “contas de vidro miúdas”, mas pode ser que também tenha se originado de “posanga”, do idioma tupi antigo, que significa “enfeite”. No candomblé, os colares dos Orixás passaram a ser feitos com estas contas artesanais; já na umbanda, os colares de miçangas recebem o nome de guia, por representarem o Guia Espiritual de cada um.
Entrelaçando estas raízes ameríndias e africanas, nada mais adequado do que a primeira grande exposição das miçangas de Mucki acontecer na Galatea de Salvador, cidade que, primeira capital do Brasil, tornou possível o encontro da Europa e da África no solo da América.
Faz bom tempo, a artista se divide entre o litoral baiano e o carioca. A Bahia foi se incorporando à sua alma, como ela aponta: “Foram muitos anos em pintura de tecidos, mas era arte utilitária e eu não queria mais isso. E aí veio a Bahia em 2004, transformando tudo e me mostrando um caminho repleto de luzes e cores. A natureza é a magia da inspiração. Eu amo a cor, preciso da cor.”
Mucki não trabalha sozinha. A concretização de cada trabalho depende de um coletivo de bordadeiras de Ilhéus e do Rio de Janeiro. São elas que dão forma final às obras e com quem a artista reparte os resultados: “Bordados sempre encheram meus olhos e tornaram possível fazer o que faço hoje, que denomino ‘pintura com miçangas’. São obras que geram trabalho para homens e mulheres artesãos, parceiros em tornar real a minha imaginação. São trabalhos muito lentos; foram eles e elas, bordadeiras, que me ensinaram o que é ter rigor, paciência e tranquilidade.”
E como se dá este complexo trabalho que vai e volta de mão em mão? Vamos dar um pequeno passo atrás para entender o começo da história. Depois de anos de estampas feitas à mão, Mucki decidiu tingir pedaços de tecidos com 20, 30 cores; após serem tingidos, ela os recortava e recosturava sobre tela. Ou seja, com o material nas mãos, não havia ainda a ideia da obra que dali resultaria. Só a partir dos recortes lançados sobre a mesa — não por acaso, Matisse é o seu ídolo —, Mucki iniciava a composição artística. Pouco a pouco, foram sendo acrescentados pequenos pontos com miçangas. E foi só quando elas, as miçangas, apareceram, que o processo mudou: os recortes de tecido foram abandonados, e as miçangas, sempre de vidro, começaram a ocupar todo o espaço da tela, criando uma textura única. No começo, Mucki usava as cores das contas de vidro que existiam no mercado; hoje, ela faz encomendas a fornecedores baseando-se em escalas de cores originais, só presentes em suas telas.
Há anos, visitei no Centre Pompidou, em Paris, uma exposição de Ghada Amer, artista egípcia renomada que foi uma das pioneiras da arte contemporânea com bordados, fibras tingidas, incrustações têxteis. Era uma pintura e não era. Era uma escultura na parede e não era. Era, apenas, o que deveria ser: um bordado que superava o artesanato contido em si mesmo e ganhava foros de grande arte. O mesmo ocorre no caso de Mucki. Há décadas, ela se debruça sobre panos. Nos panos, criou cores. Sobre as cores, refez caminhos, trajetórias, pontos e pespontos. Agora, com miçangas, cria uma forma nova, singular. Afinal, a função do artista não é a de criar algo fora do banal para acrescentar ao mundo o que ainda não foi visto? É o que ela consegue fazer com as telas bordadas, em que os fios invisíveis sustentam miçangas que fazem brotar uma paleta de cores diante de nossos olhos. A obra de Mucki reverbera o que a mata tem a dizer.
Leonel Kaz é curador e editor