FRANCISCO GALENO: O Piauí é aqui — o Piauí não é aqui: Texto crítico: Leno Veras
O Piauí é aqui — e o Piauí não é aqui
Leno Veras
A costa norte do litoral nordestino brasileiro é demarcada por sua exposição perene à força eólica, motivo pelo qual as jangadas, com suas velas coloridas içadas em curvatura hiperbólica, tornaram-se uma alegoria comumente atribuída aos navegadores marítimos da região, aos quais convergem técnicas construtivas originárias distintas, somando o conhecimento da cultura material à ciência imaterial transmitida dos povos ribeirinhos aos costeiros, em influxos que se retroalimentam como vasos intercomunicantes; ou, melhor retratado, caminhos de água que se arvoram, entropicamente, culminando numa foz em estuário resultante da chegada do rio que (como artéria) cruza sertões, cerrados e campinas até abrir-se ao oceano (por entre veios e tal qual veias) no Delta do Parnaíba.
Dentre a quase centena de ilhas fluviais por entre as quais se descortina uma miríade de ecossistemas autóctones, em pleno Meio Norte do Brasil, zona de transição entre os biomas centristas e amazônicos, destaca-se a Ilha Grande de Santa Isabel, a maior em extensão territorial do arquipélago, além de ser também a mais densamente povoada: nascido neste marco de colisão, e coalisão, entre geografias humana e física, Francisco Galeno congrega, como que numa estratigrafia genealógica, um conjunto transversal de sabedorias ancestrais — seu bisavô, mestre canoeiro; seu avô, artesão coureiro; seu pai, construtor marceneiro; sua mãe, artista rendeira. Ao alimentar-se das raízes, brotaram frutos nutridos por uma árvore familiar cuja cultura é imbricada com seu cenário natural.
A renda de bilro — técnica advinda da colonização portuguesa, bastante presente nas rotas de navegação que ligavam os fortes da ocupação nordestina à nortista (estando a cidade de Parnaíba a meio caminho entre grandes centros urbanos como Recife, em Pernambuco, e Belém, no Pará) — é, a dias de hoje, um marco de cruzamento cultural entre tradições europeias e indígenas, sendo a Ilha Grande reconhecida em específico por sua centralidade regional no desenvolvimento desta tecnologia social, pois se trata de uma articulação comunitária, com demarcada presença do saber-fazer nativo feminino. O artista, até meados de sua primeira década de vida, esteve exposto não somente à visualidade advinda de tal práxis, mas também, e sobretudo, ao seu contexto.
A característica geométrica do labor rendeiro, conformado por linhas concêntricas, porta um léxico construtivo, com ênfase na estruturação modulável, nitidamente presente na pictórica de Francisco. A replicação, à primeira vista baseada na sequencialidade, dá-se por meio de eixos que sustentam sistemas de continuidade, lócus para memorabilias costuradas por cromaticidades demarcadamente puras; são as cores que portam formas. Sua pintura, a um só tempo, é extremamente simples e profundamente complexa, como que um vórtex alimentado por influxos que vão das vanguardas modernas abstracionistas aos movimentos que encontram riquezas nas ditas materialidades pobres; influxo cubista dentre modernismos brasileiros, refluxos construtivos via cultura popular.
A arquitetura das casas erigidas em madeira (comumente proveniente dos caules das carnaúbas, cuja cera promoveu o primeiro ciclo de ocupação do litoral piauiense, tendo sido uma das chamadas drogas do sertão mais valiosas no final do século XIX) configura a malha social que habita a imagética de Galeno, em um continuum entre objetos, sujeitos e espaços. As brincadeiras infantis, as festividades comunitárias, as moradias populares — narrativas presentes em diversos pontos do plano moderno brasileiro — enredam-se, desta vez num bordado habilmente costurado por um nordestino cujo olhar é imbuído do confronto com a dura realidade social das populações periféricas. Entre sertão que vira mar e mar que vira sertão, a migração pendular delineará seus caminhos.
Para além de suas temáticas figurativas, nas quais amalgamam-se objetos emergentes do desenho industrial — com forte presença no cotidiano das populações interioranas, como a lamparina (que, em uma de suas obras, desconstrói como que em um projeto técnico ao revés) — e artefatos concebidos por manufatura familiar, como os brinquedos de madeira, suas representações arquitetônico-urbanísticas também dão a ver que o pensamento construtivo é uma linha constante de sua expressão plástica, encontrado, inclusive, na forma concreta que assumem seus assemblages ao emular mobiliários familiares; tal qual gaveteiros de memórias, e histórias, que transbordam de seu território originário para um novo quadro, quadrado fincado em meio ao mapa: a capital federal — a moderna Brasília.
Consolidou-se atribuir a alcunha “candango” àqueles imigrantes, majoritariamente nordestinos, e especificamente piauienses, que foram, de fato, e efeito, construir o novo centro do poder político nacional, em pleno vértice entre macrorregiões brasileiras. Muitos deles, a maioria, no entanto, nunca tiveram acesso a residências dentro das quatro linhas do território geométrico do Distrito Federal. Por este motivo, Galeno centra-se e se descentra, ao mesmo tempo, em sua viagem ao epicentro do país — passa, então, a residir numa das chamadas, pejorativamente, “cidades satélites”: como que em uma reciprocidade autoafirmativa, o assentamento de Brazlândia (na órbita de Brasília) passa a ser seu novo panorama de residente entre cultura popular e programa moderno.
Tensionando os limiares entre pintura e escultura, o artista constrói ali uma de suas obras mais importantes — com vontade construtiva e viés concretista (desta vez, literal) — através do árduo trabalho de calcetamento com pedras portuguesas na orla do lago Veredinha. Tal calçada, meio de expressão plástica cuja potência para visualidade geométrica já adquirira reconhecimento internacional na capital federal anterior à edificada na década de 1960, torna-se patrimônio cultural reconhecido, antes pela própria população citadina. Sua obra a céu aberto ancora a memória emigrante na forma de espacialidade transeunte. É, portanto, somente em 1990 que esta nova identidade “piauiense-brasiliensis” dá forma à sua historicidade, apropriada por seu povo via arte pública.
Francisco Galeno, ao fincar bandeira no Planalto Central, conecta espaços e tempos até então desconexos. Sua geometria, tão côncava quanto convexa, vê-se de fora para dentro, e de dentro para fora. Não à toa, destino e origem desenham as formas do agora.
Leno Veras é curador, pesquisador e professor