Corpos terrestres, corpos celestes | Erika Verzutti, Gokula Stoffel, Miguel dos Santos e Pélagie Gbaguidi: Curadoria: Tomás Toledo | Galatea e Fortes D'Aloia & Gabriel
Diálogo entre corpos e obras: Erika Verzutti, Gokula Stoffel, Miguel dos Santos e Pélagie Gbaguidi
A exposição Corpos terrestres, corpos celestes surgiu de um desejo de parceria entre duas galerias, Galatea e Fortes D’Aloia & Gabriel, e da proposição de diálogo entre a produção de Miguel dos Santos e das artistas Erika Verzutti, Gokula Stoffel e Pélagie Gbaguidi. Parte, portanto, de uma operação de aproximação formal, de afinidades estéticas, e não de um recorte geracional, temático, regional ou mesmo de filiação de um movimento ou de um contexto artístico compartilhado.
A produção de Miguel dos Santos, artista pernambucano radicado em João Pessoa, na Paraíba, foi tomada como ponto de partida dessa dinâmica dialógica estruturada pela justaposição formal entre as suas obras e as das demais artistas. A partir desse gesto livre de aproximação, foram se relevando afinidades e conexões não somente formais, mas também temáticas e conceituais, chegando ao território comum da representação de forma expandida do corpo.
A partir desse interesse compartilhado, a exposição toma a representação da figura humana (como também de uma noção expandida de corpo) na obra dos quatro artistas como fio condutor, explorando as deformações, transformações, transmutações e fusões de imagens de corpos. Dividida em cinco núcleos — Máscaras, Corpo narrativo, Vênus mãe, Tótem e Corpo celeste — a mostra percorre os pontos de convergência e fricção entre os trabalhos em pintura e escultura produzidos entre 1975 e 2024, em cruzamentos transterritoriais e transgeracionais.
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Miguel dos Santos nasceu em 1944 em Caruaru, cidade pernambucana, um território chave para a escultura figurativa brasileira, terra de Vitalino Pereira dos Santos, o Mestre Vitalino, criador da tradição brasileira de esculturas em barro cozido em pequeno formato com representações do cotidiano do sertão nordestino. Vitalino vendia suas figuras nas feiras populares da cidade, que eram frequentadas por Miguel desde criança e se tornou uma referência fundadora na formação autodidata do artista.
Nos anos 1970, aproximou-se do Movimento Armorial, fundado por Ariano Suassuna, e das discussões sobre a estética regional nordestina, criando narrações em pintura inspiradas no romanceiro popular nordestino e na literatura de cordel, com seu arcaísmo medieval e contos fantasiosos. Com o tempo, Miguel dos Santos acrescentou a esse universo outras referências estéticas de suas origens, mesclando as mitologias dos povos originários das Américas e da arte afro-brasileira, sobretudo a de origem Iorubá. Essas pesquisas estéticas acabaram levando o artista a participar do Segundo Festival Mundial de Artes e Cultura Negra e Africana, o FESTAC ‘77, realizado em Lagos, Nigéria, um ponto de inflexão em sua carreira. A partir desse contato direto com a arte tradicional africana, sua produção, tanto em escultura em cerâmica quanto em pintura, passou por um processo de sintetização formal, resultando em uma série de composições em torno da máscara e do tótem, algo que perdura até hoje.
Essas referências somam-se ao papel que a escultura de Aleijadinho teve na poética de Miguel dos Santos, que é visível em suas figuras retorcidas, nas formas sinuosas e voluptuosas que flertam com o ornamento, conferindo um caráter fortemente figurativo, tanto na sua produção escultórica quanto pictórica, destoando do contexto da produção artística brasileira do início da segunda metade do século XX, marcado pelas investigações abstratas e construtivas.
O núcleo Máscaras conta com um grupo de pinturas e esculturas de Miguel dos Santos dedicado ao tema do retrato em que podemos observar a presença das referências de arte africana, com composições marcadas tanto pela frontalidade das máscaras quanto pela lateralidade das pinturas egípcias, estruturadas de forma sintética por campos de cor bem delimitados e com um caráter onírico e surreal. Os títulos variam entre simplesmente Máscara, com toda a carga espiritual imbuída nessa tipologia de objeto, passando por citações a figuras históricas como Ganga Zumba (primeiro líder do Quilombo dos Palmares) e mitológicas como o deus Hefesto (deus do fogo e da metalurgia na mitologia grega) até nomes de amigos, em uma mescla do real com o fantástico e do histórico com o pessoal.
Justapostos aos trabalhos de Miguel dos Santos estão pinturas e máscaras em cerâmica fria de Gokula Stoffel. A artista, nascida em 1988 em Porto Alegre e radicada em São Paulo, tem uma produção que borra a fronteira entre pintura e objeto, com composições marcadas pela materialidade, incorporando tramas em tecido, elementos ordinários do cotidiano, materiais sintéticos e naturais, com temáticas que passeiam pelas memorias pessoais, conteúdos oníricos e referências que parecem ter saído de fragmentos de filmes, livros e dos conteúdos da pós internet.
Sua obra é marcada por uma forte gestualidade, de caráter bastante emocional, com títulos que nos levam a construções de imagens narrativas e teatralizadas. Os trabalhos apresentados neste núcleo parecem “fazer cena”; os retratados estão visivelmente abalados (vide o choro quase sorrindo de Chorrindo, o drama de Fim de filme ou a figura taciturna de Pensamento mineral), transmitindo sentimentos por meio de uma figuração marcadamente expressiva, elaborada por uma fatura retorcida, deformada e borrada pelas emoções.
A justaposição das figuras dos dois artistas cria uma interessante relação, ora de aproximação, pela paleta de cor e pelo olhar frontal que encara o espectador, ora de distanciamento temático dessas personas, pois os melancólicos personagens de Gokula parecem não habitar o mesmo universo que os impávidos seres de Miguel.
A tônica figurativa da mostra se desdobra no núcleo Corpo narrativo, que por meio de trabalhos de Pélagie Gbaguidi, Gokula Stoffel e Miguel dos Santos explora o poder de contar histórias da pintura, levando-nos a pensar como a representação do corpo é um instrumento para construção de narrativas e, também, como o corpo é resultado da construção de narrativas históricas e sociais. O cânone da pintura ocidental é bastante sintomático destas questões, ao ter sido produzido pelas estruturas do poder — o patriarcado branco euro-americano —, expressando seus interesses e visão de mundo. Dentro desse contexto social opressivo, a representação da mulher, em sua grande maioria, foi elaborada de forma sexualizada ou destituída de agência, em cenas subservientes e domésticas, com suas narrativas sempre construídas pelo outro, o homem.
A produção multifacetada de Pélagie Gbaguidi, artista com família beninense nascida em 1965 em Dakar, no Senegal, hoje radicada em Bruxelas, na Bélgica, confronta essas estruturas narrativas canônicas da história da arte ocidental por meio de um trabalho em pintura, desenho e bordado, em uma espécie de colcha de retalhos de histórias — tomando seu sentido expandido na língua portuguesa, que abrange desde a ficção, as memórias pessoais até as narrativas oficiais. A artista considera-se uma griot contemporânea, uma contadora de histórias que atualiza a tradição da oralidade narrativa de alguns povos da África Ocidental e, nesse processo, mescla as suas próprias memórias, confrontando o legado colonial e pós-colonial que atravessa a sua existência.
Formalmente, a produção de Pélagie Gbaguidi é constituída de fragmentos, de retalhos de tecido pintado, bordados e conjuntos de desenhos que, juntos, criam narrativas sobrepostas, acumuladas e de condução sinuosa e elíptica, fugindo da linha reta teleológica da grande História. A gestualidade das pinturas e desenhos parece carregar a emergência da fala, resultando em imagens que contêm movimento e vida, que contam histórias, entre elas, histórias do corpo, como se vê em Le jour se lève: Body Archive [O dia nasce: Arquivo Corporal].
O caráter fragmentário da obra de Pélagie Gbaguidi encontra-se com os fragmentos de corpos de Gokula Stoffel neste núcleo. A primeira propõe questões existenciais em seus retalhos pictóricos, reforçados por títulos como Quel est le sens de la vie sur terre et la fabrique de la conscience [Qual é o sentido da vida na terra e a fábrica da consciência], trabalho em que vemos uma figura segurando um livro com as mãos em um momento de leitura. Já a segunda elabora um processo de desmembramento das partes do corpo, criando esculturas de fragmentos que parecem ganhar autonomia da totalidade corporal, em uma espécie de teatro de marionetes de nos convida a criar cenas imaginárias sugeridas pela sua forma e por títulos como Flerte e All yours [Todo seu].
Ainda nesse mesmo núcleo, duas pinturas de Miguel dos Santos iluminam figuras femininas em campos onde o papel e a atuação da mulher são constantemente eclipsados, utilizando a representação do corpo para contar histórias à margem das narrativas oficiais. Em Sertaneja,ao invés de retratar um homem, como se convencionou fazer na tradição pictórica do sertanejo, personagem típico do Nordeste brasileiro, pinta uma mulher, mostrando que o campo e a lida da terra também são espaços femininos. Já em Rainha dos Palmares,retrata Dandara, histórica liderança feminina do Quilombo dos Palmares, colocando a mulher no centro da luta por liberdade no período colonial escravocrata brasileiro.
Seguindo na sequência dos núcleos que organizam a mostra, temos Vênus mãe e Tótem, seções correlatas que exploram o diálogo entre trabalhos de Erika Verzutti e Miguel dos Santos.
Erika Verzutti nasceu em 1971, em São Paulo, e vive e trabalha entre esta cidade e Bruxelas, na Bélgica. Sua produção entrecruza as fronteiras entre escultura e pintura, criando situações pictóricas em objetos e dando corporeidade à pintura. Utiliza materiais tão diversos entre si quanto bronze, papel machê, concreto, gesso, tinta acrílica, óleo e cera, criando composições configuradas por um vocabulário formal e temático que dialoga e reelabora referências da história da arte, da cultura pop e das práticas vernaculares.
Uma de suas séries mais icônicas é dedicada ao tema da Vênus e sua representação primordial na história da arte, a Vênus de Willendorf (25.000-20.000 a.C.), com reelaborações em escultura do tema, agregando outros sentidos, conteúdos, formas, símbolos e nomes a essa tipologia tão clássica. As Vênus de Verzutti preservam a silhueta das estatuetas primordiais, com a cabeça pequena, o tronco e as ancas largas (símbolo de fertilidade), e as pernas finais, porém, abstrai a corporeidade humana, trazendo um devir vegetal, com títulos que expandem a interpretação, tais como Venus Yogi, Venus #Freethenipple e Vênus em chamas.
Venus Doll [Vênus boneca] e Venus (Blue) [Vênus (azul)], ambas de Verzutti, são esculturas de dimensão similar (em torno de 45 cm), ambas com elementos alegóricos do mundo vegetal. Uma abóbora ora faz o papel de tronco, ora de perna, já as cabeças são coradas por frutas do conde, característica que nos remete à textura reticulada da cabeça da Vênus de Willendorf. As duas obras estão justapostas nesse núcleo a duas esculturas em cerâmica esmaltada de Miguel dos Santos intituladas de Mãe.Apesar das estratégias estéticas e compositivas completamente diferentes, a relação formal entre elas é imediata e se dá pela paleta de cor, silhueta e até pelo cabelo reticulado, revelando a influência da simbologia de fertilidade, sexualidade e maternidade das Vênus.
No pequeno núcleo Tótem, também lidamos com uma tipologia que remete aos primórdios da humanidade. Os totens estão presentes na cultura visual de diversos povos originários e estão conectados com os significados espirituais e de pertencimento social. Mestre,de Miguel dos Santos, se insere numa longa tradição do artista de composições totêmicas elaboradas por sobreposição vertical de peças de cerâmica esmaltada, com elementos que fazem referência a entidades espirituais, figuras históricas e temas da cultura popular nordestina. O trabalho nos leva a uma imagem paternal e de reverência à ancestralidade dos saberes. Por sua vez, Erika Verzutti elabora um totem que parece estar menos conectado com o masculino e com a energia fálica presente nos totens em geral. Sua Siete Granadas surge como um empilhamento de romãs, mas filiada à coluna infinita de Brancusi e mais feminina, como os orifícios vulváticos da fruta.
Por fim, o núcleo Corpo celeste expande a noção de corpo para além do humano, saindo do contexto da Terra e indo para o céu e seus objetos, que povoam o sistema solar, como planetas, estrelas, satélites, cometas e asteroides. Os desenhos formados no céu pelos corpos celestes sempre acompanharam a história da humanidade, provocando temor pelo desconhecido, mas também oferecendo respostas paras questões existenciais e práticas, bom como causando fascínio por seu mistério espiritual.
Uma dialética formal se estabelece entre os trabalhos de Erika Verzutti e Miguel dos Santos neste núcleo, com composições que parecem criar grafismos cósmicos e simbologias espirituais, algo que se vê em Small God [Pequeno deus], um bronze de Verzutti, com um desenho que se assemelha ao símbolo do infinito acrescido de um olho no topo. Ao lado desse trabalho, a pintura Um neto do Aleijadinho,de dos Santos, apresenta uma composição sinuosa, figurando um ser que é quase só olho, espalhando o olhar de Small God.
Ainda no mesmo núcleo, mas voltando para o corpo humano, a pintura de Pélagie Gbaguidi, The Witness [A testemunha], da séria Quel est le sens de la vie sur terre et la fabrique de la conscience [Qual é o sentido da vida na terra e a fábrica da consciência],mostra duas mãos cercadas por pequenos olhos, sugerindo uma situação de leitura dos traços das mãos, com o destino e suas testemunhas, como se o futuro traçado pelos astros que compõem os signos do Zodíaco pudesse se espelhar nos caminhos desenhados em nossas mãos.
O flerte com o surreal, com o espiritual e o onírico percorre todos os trabalhos da mostra e dá a tônica da categoria de representação que é explorada pelas obras, com seus tipos diversos de corpos. No entanto, essa aproximação com o surreal não se dá pela via do Surrealismo, movimento da vanguarda europeia da primeira metade do século XX, mas por uma perspectiva própria, de uma epistemologia não europeia, que navega pelos campos do sonho, da imaginação, da metamorfose, da magia, de modo a ressignificar o real e a materialidade.
Ariano Suassuna, em texto sobre Miguel dos Santos, aborda a questão do Surrealismo da seguinte forma:
“O que nos caracteriza e distingue mais é a ligação com o realismo mágico do Romanceiro popular nordestino. Realismo mágico — brasileiro, nordestino e de raiz popular — e não Surrealismo. Veja-se bem que existe uma diferença bastante acentuada entre os pintores surrealistas ou ligados aos precursores do Surrealismo e um pintor como Miguel dos Santos.”[1]
Embora seja uma reflexão acerca da poética de dos Santos, penso que a perspectiva de Suassuna pode ser utilizada como chave de pensamento para as demais artistas da exposição, em suas buscas por uma linguagem própria, que lida e deglute elementos da história da arte ocidental a partir de práticas de pensamento e fazer artístico não hegemônicos.
Tomás Toledo é curador e sócio-fundador da Galatea.
[1] SUASSUNA, Ariano. Miguel dos Santos: pinturas e cerâmicas. Folheto da exposição individual de Miguel dos Santos no MASP – Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, novembro de 1974.