Mira Schendel: Toquinhos: texto crítico: Lisette Lagnado
senza metafora[1]
Lisette Lagnado
— O que fica da árvore após ter seu tronco cortado rente ao solo?
— Um toco, informa o dicionário.
— E se o “toco” alude a uma presença minguada, de ordem menor, o que conjecturar
a respeito de “toquinho”?
Não obstante, a palavra “toquinho” consagrou uma série preciosa de trabalhos de Mira Schendel.[2] Esse hiato entre título e obra adquire relevância considerando o ingresso tardio do idioma brasileiro na biografia da artista. Nascida em Zurique em 1919, de pai alemão e mãe italiana, emigrou para o Brasil no pós-guerra, já com trinta anos, movendo-se por vários territórios linguísticos, do alemão ao servo-croata, além de sua língua materna italiana. Após breve período vivido em Porto Alegre, estabelece-se em 1953 na cidade de São Paulo.
Proponho positivar o título que agrupa esse conjunto específico de desenhos, entendendo que não resulta de um projeto atrofiado nem deriva de um processo de demolição, mas aponta para a resistência de seu enunciado. Lançada pela artista, a palavra convida a abordar a parte remanescente do “tronco” dentro de uma perspectiva de excedente e continuidade. Em contrapartida à sua aridez terminológica, a série Toquinhos vibra em intensidade.
Há, presumivelmente, um elo entre a desterritorialização da artista e seu isolamento nas grandes narrativas nacionais. Nada que impeça, porém, a constituição de um lugar singular. Deleuze e Guattari souberam atribuir um status assombroso ao vocabulário de Kafka. “Uma literatura menor não é a literatura de um idioma menor, mas antes a literatura que uma minoria faz dentro de um idioma maior.”[3] Transpondo este argumento para o campo que nos interessa, equivale afirmar que a sobriedade de cada Toquinho tem a potência de convocar uma “questão de vida ou morte”, expressão usada certa vez por Schendel para justificar sua premência de pintar.[4] Ou, segundo os autores, significa encontrar “seu próprio dialeto, seu próprio terceiro-mundo, seu próprio deserto”. E assim foi.
Sabemos que dobrar as convenções da fala, ocasionando sentidos inesperados, corresponde ao fundamento mesmo da poesia, exercício que Schendel praticou ao longo da vida sem outro compromisso que o prazer. Ao artista Li Yuan-Chia, que conhecera em Londres durante sua exposição na Signals, confiou (em italiano!) sua entrega a desejos paralelos: “Io continuo a disegnare. Ma ho cominciato a scrivere poesia, che mi interessa forse di piú.”[5] Por certo, lições de contenção e assimetria permearam a espacialidade poética de um e outro, a quem o menor ponto possui a força de imantar o olhar. “senza metafora”, inscreveu Mira Schendel sobre uma Monotipia que poderia ser uma natureza-morta conceitual, um poema visual, um aforismo filosófico: “L’anguria é rossa, l’abacate verde...”.
Agora, a que espécie de matriz remeter os Toquinhos?
Quem conhece os trabalhos que a artista realizou sobre madeira e aglomerado, usando têmpera, gesso e uma mistura de técnicas, já esbarrou em composições marcadas por volumes (1954) e recortes (1964) geométricos. Posteriormente, esse método incorporou diversos materiais, aplicando sobre a superfície blocos de acrílico com letraset, papéis tingidos, folhas de ouro...[6]Não faltaram investidas, de sua parte, interpelando o código gráfico da escrita, como atesta a enorme série Monotipias (c. 1964-67), realizada com papel japonês artesanal. Ambições anunciadas desde então: jogar com as sombras e instaurar uma qualidade vaporosa, aérea, nada disso foi novidade. Por algum motivo, entretanto, revelaram uma insuficiência em relação à liberdade espacial, devido talvez à interdependência da monotipia com a parede.
Todavia, o caminho mais explícito para balizar o surgimento dos Toquinhos encontra-se nos Objetos gráficos (c. 1967-73), formados por finíssimos papéis de arroz com caligrafias manuscritas e letras adesivas, estas últimas onipresentes em muitas séries. As chapas de acrílico passam a alcançar uma escala de um metro de cada lado, dispensam a moldura e são apresentadas suspensas do teto. Com esse dispositivo, Schendel tira partido de uma superfície dotada de duas frontalidades. Registra em seus diários que finalmente conseguiu contornar o plano bidimensional, liquidar as ideias de “frente” e “verso”.
Na história da arte brasileira, a temática do “dentro” e do “fora” atingiu um momento paradigmático em 1963, quando Lygia Clark conceitua sua proposição Caminhando, que consiste em recortar, com uma tesoura, uma fita dobrada em espiral até não conseguir mais avançar. Uma certa afinidade de intenções, notadamente a entrega à experiência da duração, aproxima o ato desse “caminhar” e a simultaneidade cognitiva proporcionada pelas grandes placas de acrílico de Schendel, praticamente invisíveis, abrigando caligrafias flutuantes.
Não me parece exagero sugerir que a pesquisa em torno das qualidades do acrílico represente um pico de euforia em sua trajetória, sobretudo pela possibilidade de fazer virtualmente coincidir o “aqui” e o “agora”, espaço-tempo. Conjectura-se que, por sua complexidade de execução, a produção dos Objetos gráficos ficou restrita a poucas unidades. A passagem para uma manufatura externa (não mais doméstica) e industrial requeria investimentos maiores, escapando da autonomia das séries anteriores. Apesar disso, um imponente conjunto de doze peças foi exposto em 1968 no Pavilhão do Brasil em Veneza. Vale recordar, ainda, uma extraordinária produção de Cadernos (1970-71) que investigavam diferentes profundidades mediante sobreposições, tangenciando, portanto, os mesmos temas: transparência e simultaneidade.
Ou seja: desde o início dos anos 1960, a artista vinha defendendo uma fenomenologia da percepção da obra sem as dualidades que caracterizam a consciência ocidental. Uma acepção muito particular de “corporeidade”. Nenhum vocábulo, letra, número, traço, será um gesto gratuito. Basta acompanhar o peso de termos como “zeit” e “welt”, e uma irresistível atração pela Teoria dos conjuntos, com suas setas, equações, signos, “n”, “x”, “{}”, “0”... e uma precisão absoluta em tudo, ainda que uma coreografia lúdica admita intercâmbios, e que “p” vire “q”, ou “d” ou “b”.
No início dos anos 1970, Schendel procurou dar outros volumes ao acrílico, explorando tiras articuladas, discos, cubos. O pensamento pictórico, que nunca a deixara, ressurge em pequenos papéis embebidos de tinta aquarela colorida. Diferentemente dos desenhos da série Bombas (1965), em que o nanquim se espalha sem muito controle, os recortes tingidos chegam densos, saturados. Estes atuam sobre o retângulo do espaço à maneira de esponjas, aspirando seu entorno. A noção oriental de um “vazio cheio” se aplica aqui. O que nos é dado a ver é uma economia, sobras de linguagem... toquinhos: “1 4 5”, “e e e e”, “| |” …
Que desígnios atribuir ao domínio da mão? “Dou a maior importância a que seja assim manual, que seja vivenciada, que saia assim da barriga”, declarou em entrevista para Jorge Guinle,[7] refutando categoricamente as adjetivações de “intelectual” e “ascético”, como se não houvesse corporeidade em trabalhos feitos com rigor e precisão. O que lograram os Toquinhos após a radicalidade de multiplicar e suspender as grandes placas dos Objetos gráficos, equilibrando uma escritura febril, em diálogo com uma pessoa em pé? Pergunta inócua. No universo de uma artista dedicada à experimentação, não cabe de modo algum introduzir hierarquias entre suas diferentes séries.
Seria temeridade buscar nomear a essência de uma ambição alheia. Muitos tentaram. O vazio ou a transcendência do mundo material pontuaram uma vasta bibliografia sobre Mira Schendel. A reflexão de Vilém Flusser elaborou sua versão a partir de um misticismo religioso envolvendo a origem da língua. Descreveu os riscos, as retas, as curvas, signos e letras, como linhas virtuais, acenos que pedem admissão, tangenciando assim o tema do exílio [grifos nossos].[8] Aproveitando a brecha, como imaginar, depois de sua participação na Biennale di Venezia, a complexidade de voltar a um país dirigido por uma ditadura militar?
Ainda há de ser escrito um ensaio que exponha a dificuldade de conseguir transitar de forma única entre a poesia concreta e a filosofia, arenas historicamente dominadas por homens. Nenhuma outra artista mulher de sua época impôs semelhante temor referencial. Por isso, não deixa de causar espanto observar alguém dessa magnitude fazer uso do diminutivo peculiar à linguagem irreverente da infância para intitular suas obras: “trenzinho”, “droguinha” e “toquinho” figuram entre algumas de suas invenções. Sim, Clarice Lispector publicou contos para crianças. Será que Lygia Pape lançou a palavra T-teia no campo semântico da arte sabendo que teteia designa um brinquedo? Índice de despojamento ou coragem dessas figuras? Seja o que for, somente uma boa dose de liberdade permite que um esforço tão intenso de conceituação mereça títulos singelos, descomplicados e autênticos — como, aliás, os ensinamentos que recebemos dos pequenos, também apelidados “toquinhos de gente”!
[1] Inscrição da artista, da série Monotipias.
[2] Segundo cronologia estabelecida por Célia Euvaldo, Toquinho designa duas séries distintas: a primeira, com blocos de acrílico (1968-69) e letraset colados sobre placas de acrílico, e uma posterior (1972-74), “trabalhando com papéis brancos ou pretos em que cola pequenos quadrados de papel japonês tingido e aplica letras, números e símbolos gráficos, pretos ou brancos.” Cf. Sônia Salzstein (org.), No vazio do mundo. São Paulo: Marca d’Água, 1996.
[3] Tradução nossa. Cf. Gilles Deleuze e Félix Guattari. Kafka. Pour une littérature mineure. Paris : Minuit, col. “Critique”, 1975. “Une littérature mineure n’est pas celle d’une langue mineure, plutôt celle qu’une minorité fait dans une langue majeure.” (p. 29).
[4] “A vida era muito difícil, não tinha dinheiro para pagar as tintas, mas eu comprava tinta vagabunda e pintava apaixonadamente. Questão de vida ou morte.” Depoimento de Mira Schendel para Jorge Guinle. Revista Interview. São Paulo, julho de 1981.
[5] Cf. Carta de 15/01/1967. Arquivos Mira Schendel.
[6] O mais famoso é um quadro icônico de 1954, de 51,1 x 66 cm. A assinatura de Mira é acompanhada da data em algarismos romanos. Pertencia à coleção Adolfo Leirner de Arte Brasileira Construtiva e está no Museum of Fine Arts de Houston.
[7] Depoimento para Jorge Guinle, op. cit., julho de 1981.
[8] Vilém Flusser. “Indagações sobre a origem da língua”. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 de abril de 1967, “Suplemento literário”, p. 1.