Adiar a ordem: Curadoria: Fernanda Morse | Bianca Madruga, Carolina Cordeiro, Cinthia Marcelle, Isadora Soares Belletti, Leila Danziger e Maíra Dietrich
Adiar a ordem
Fernanda Morse
Onde a poesia mora
Não raro, dizemos que não só um texto, mas também uma paisagem, uma imagem ou um gesto é poético. Ao fazê-lo, tentamos dar conta de algo inexplicável que nos sensibiliza no encontro com as coisas existentes no mundo. O poético, então, fala daquilo que chama e requer nossa atenção e que, a partir disso, nos comove e nos abre para uma experiência comum, compartilhada. Tal uso adjetivo do termo — como em “que cena poética!” — nospermite entender a noção de poesia como um tipo de presença que não se restringe ao domínio das Letras e do poema como texto literário. Nesta exposição, encontram-se justamente trabalhos que perseguem a poesia, trabalhos onde a poesia mora.
Reunir Bianca Madruga (1984), Carolina Cordeiro (1983), Cinthia Marcelle (1974), Isadora Soares Belletti (1995), Leila Danziger (1962) e Maíra Dietrich (1988) nesta mostra partiu de um processo intuitivo por meio do qual pude perceber que artistas com as quais eu nutria algum tipo de interlocução, ou cujas trajetórias eu atentamente acompanhava, guardavam conexões profundas e sutis, embora desenvolvessem pesquisas autênticas e pertencessem a contextos distintos. Encarando suas produções pela perspectiva da história da arte recente, pode-se dizer que estas se situam sob o vasto guarda-chuva da chamada arte conceitual, lidando com o legado das vanguardas e das neovanguardas. Com práticas baseadas em intenso experimentalismo, elas transitam entre diferentes linguagens como desenho, colagem, vídeo, instalação, escultura e o objet trouvé, além de suportes e materiais como papel, metal, tecido, látex, durex, pedra, galho e outros ainda.
O título Adiar a ordem diz respeito ao caráter não-convencional dos métodos e recursos simbólicos mobilizados pelas artistas. É como se, em seus trabalhos, houvesse uma busca por desafiar a ordem das coisas, como se, através deles, essa ordem fosse desfeita. Por identificar um traço agudo e inventivo na raiz dessas produções, busco defender que elas se alinham à definição primordial do que é a poesia, no ponto em que é reconhecida enquanto a forma de expressão mais condensada e carregada de significação, engendrada a partir de um uso insubordinado e subversivo da linguagem.
A poesia se ergue nas mensagens concentradas e elípticas dessas obras, no sentido que não se oferece pronto, no enigma, no uso incomum dos elementos, de modo a provocar e renovar nosso olhar e nosso posicionamento diante daquilo que está dado. A poesia se ergue na atenção requerida, no tempo da impregnação, na dúvida, na sugestão e na necessidade que temos de olhar de novo e novamente esses trabalhos, de permanecer um pouco com eles.
O cheio, o vazio e o ritmo
A bandeira é vazada, sem pátria, eternamente estrangeira. No lugar do emblema e dos símbolos de uma nação, o vazio. Por que, ainda assim, a obra de Bianca Madruga diz tanto? A estrangeira (2025) foi produzida especialmente para esta exposição, e sua forma final resulta de uma longa conversa com a artista. Tendo como referência a obra Relógio Solar nº 2, exibida no pátio do Paço Imperial, no Rio de Janeiro, em 2019, o trabalho aqui mostrado mantém o vocabulário da construção civil e da indústria, perceptível no vergalhão da haste e no aço da base, integrando-o, assim, à pesquisa mais recente de Madruga, na qual o látex assume protagonismo. A bandeira esburacada é o primeiro elemento visto ao nos direcionarmos à mostra, ainda do lado de fora do espaço expositivo. Despudoramente exposta às intempéries, ela já se configura como uma estrutura desgastada, um antimonumento — uma alegoria do nosso e de tantos outros países na atual conjuntura geopolítica.
Os procedimentos que constituem A estrangeira (2025) dialogam em diversas instâncias com a produção de Cinthia Marcelle. Suas obras aqui apresentadas fazem parte da série Por via das dúvidas (2007-em processo), que deu título à sua mostra panorâmica, realizada pelo MASP em 2022. Os desenhos de muros de tijolos vazados atravessam os últimos dezoito anos da produção de Marcelle, incorporando temáticas caras à sua obra como um todo. Desde o plano formal, a série reproduz o impasse entre limitações e fronteiras ao se utilizar de materiais como fita crepe e durex para delinear os muros e seus buracos. Evocando as noções de opacidade e transparência, o durex utilizado nesses novos exemplares da série, produzidos para a exposição, tanto permite ver através dele quanto absorve as partículas, as digitais e os resíduos involuntariamente capturados e incorporados ao trabalho.
Entre a prisão e a liberdade, o que nos une e nos separa, a abertura e o enclausuramento, o jogo do título com a expressão “por via das dúvidas” se complementa com a série irmã a essa, que traz desenhos nos quais os muros encontram-se inteiriços, sob o título Explicação (2007-em processo). A artista parece nos sugerir, então, que elucidar um evento, um fato ou uma obra muitas vezes significa confiná-los. Isabella Rjeille, curadora da individual no MASP, acrescenta: “Com esse trabalho, Marcelle evoca a ruptura e a quebra, simbolizadas pelo muro em ruínas, como ações possíveis diante das estruturas que limitam, cercam e retiram os horizontes de diversos corpos, sujeitos e subjetividades.”[1]
A desordem do muro descaracterizado de sua função — delimitar e isolar um espaço — é homóloga à dos jornais apagados por Leila Danziger, que se tornam incapazes de cumprir o seu papel — informar e dar notícia. Por mais de duas décadas, Danziger se confronta com o excesso desses impressos, os quais chama de “diários públicos”. No seu caso, a fita crepe é aliada do apagamento, sendo o instrumento por meio do qual a artista esvazia os jornais de seu conteúdo. Nesta exposição, entre a obra Waly & Leminski (2023/2025) e a instalação Pallaksch, Pallaksch (2010/2025), é possível observar a dialética do gesto delicado e certeiro de Danziger que, ao apagar com material adesivo o texto do jornal, produz tanto o vazio quanto o acúmulo de restos absorvidos pelos metros e metros de fita. O comentário do crítico de arte Itzhak Goldberg, no ensaio de apresentação da coletânea L’art du vide [A arte do vazio] (2017), faz eco ao que está em jogo nessas obras: “Desde sempre, o gesto da criação experimenta um equilíbrio entre o cheio e o vazio ou, como escreve François Jullien, ‘o cheio e o vazio se engendram reciprocamente.’”[2]
A variação entre cheio e vazio é como a variação entre som e silêncio, movimento e pausa — ela implica um ritmo. Maíra Dietrich explora essa dinâmica em todo seu corpo de obra, e ela se manifesta de forma exemplar nos trabalhos selecionados para esta exposição. Em Cena 21 — Gagueira (2022), instalação de parede pertencente à série Olho que vê olho que lê, o ritmo é fragmentário e repetitivo, como ocorre na experiência da gagueira mencionada no título. Apresentada pela primeira vez no Campo Aberto da residência do Pivô em 2022, a série se iniciou como um roteiro de filme com cinco personagens: o Olho, a Mão, a Boca, a Palavra e a Câmera. Cada cena desse filme se materializou de forma instalativa em trabalhos que operam uma espécie de análise da linguagem ao decompô-la como nas separações silábicas. Segundo Dietrich, “essa série marca a incorporação do texto como procedimento do trabalho, onde fotografias, desenhos e objetos são entendidos como elementos de linguagem editados sobre a parede. Sílabas e predicados que escrevem no espaço.”[3]
O desenho de Dietrich parece apreender o traço como uma espécie de unidade mínima da escrita. A artista entende que escrever é como realizar uma coreografia, cujo vocabulário gestual é composto por avanços e recuos. A linha e o espaço em branco que vemos nas obras das séries Jogo cego (2018) e Ritmo (2024) partem desse mesmo lugar. Sobre a primeira, diz a artista: “O desenho é um jogo, e a demarcação de fita é o ringue. Dentro do ringue, são desenhadas primeiro as linhas horizontais com papel carbono. Esse desenho é coberto por outro papel carbono, onde são traçadas as linhas verticais, e o mesmo acontece com as diagonais. Depois de todas as rodadas, o carbono é retirado e o desenho é visto como um todo pela primeira vez.”[4]
Desdobrando a dinâmica desse jogo, os desenhos inéditos da série Ritmo nascem das batidas de um metrônomo que a artista dispara antes de traçar as linhas sobre o papel carbono, desta vez vermelho. A marcação sonora conduz o gesto, que resulta numa espécie de escrita do som, numa partitura. Sem ver a superfície do papel, a artista aproveita a imprevisibilidade do resultado final como oportunidade para explorar sobreposições e acidentes. Entre blocos de cheio e vazio, os eventuais acúmulos de linhas conferem uma dimensão palimpséstica à obra. Ao comentar que opera sem “atacar diretamente o papel” (lembro-me de Mira Shendel e das monotipias que desenhava “pelas costas”, como diz Rodrigo Naves), Dietrich acata o acaso.
É notável, ainda, o ritmo das tiras de zinco na nova série de trabalhos de Carolina Cordeiro. Protagonista de sua produção desde a instalação Dizem que há um silêncio todo negro, apresentada no Auroras, em São Paulo, em 2019, o zinco carrega símbolos que conectam de forma sutil a obra de Cordeiro ao contexto da arquitetura popular e da canção brasileira. “A porta do barraco/ Era sem trinco/ E a lua, furando o nosso zinco/ Salpicava de estrelas/ O nosso chão.../ E tu/ Tu pisavas nos astros distraída...” A artista refez o chão de estrelas do velho samba na instalação que cobria a claraboia da biblioteca do Auroras e, quatro anos depois, utilizou a mesma placa de zinco perfurada (cujos furos deixavam passar feixes de luz, reproduzindo o céu no assoalho) para construir as enigmáticas peças que compuseram a instalação O tempo é (2023), apresentada em sua individual na Galatea. Na mesma exposição, pequenos discos de zinco foram mostrados rolando, em queda, sobre o papel na série Sinais iniciais (2023). Agora, o zinco em tiras é tramado, trançado e dobrado sobre a folha de papel, com uma leveza que o faz parecer muito mais maleável do que de fato é. Escrevendo com a tridimensionalidade do zinco, com esta série, Cordeiro explora um novo capítulo de sua trajetória com o material.
Tensão, suspensão e queda
Durante os meses de 2023 em que residiu em Berlim para estudar na UDK (Universität der Künste), Isadora Soares Belletti se viu capturada por elementos bastante comuns da paisagem urbana, mas que até então lhe eram quase indiferentes: as grades, hastes, estacas e remendos instalados em torno de plantas e árvores para garantir sua sustentação, estabilidade e proteção contra as mais variadas ameaças. Projetando-se, a partir de sua própria posição de imigrante, na experiência de estrangeiridade que a vida vegetal e animal enfrenta em grandes cidades, Belletti concebeu a imagem da gaiola de pássaros atravessada por galhos de árvores que, a um só tempo, a escancaram e nela se sustentam. Experimentos para uma estação de cura (autorretrato) (2023/2025) evoca a ambivalência entre proteção eclausura, cuidado e opressão, ordenamento e aprisionamento. A obra busca evidenciar uma espécie de tática de compensação empregada como estratégia para a manutenção de existências que se encontram fora de lugar. Os elementos que compõem o trabalho — as gaiolas, os galhos, os remendos de esparadrapo e os rastros de analgésicos — assumem valor metonímico em relação a diferentes espécies (animais e vegetais) e às práticas (aprisionamento e cuidado) a elas associadas. Tanto simbólica quanto visualmente, a obra se conecta com trabalhos como Igloo con albero [Iglu com árvore] (1969), do italiano Mario Merz (1925-2003). Pertencente à geração de artistas vinculada à Arte Povera, Merz condensa em seus iglus, no plano formal e semântico, conceitos caros à obra Experimentos de Belletti, como a expansão e a introspecção.
Outra obra presente na exposição, que se relaciona com os princípios da Arte Povera e tem como fator crucial um elemento coletado na natureza, é a instalação Cruzeiro do Sul (2013/2025), de Carolina Cordeiro. Nela, um barbante atravessa o espaço expositivo por meio de um pequeno orifício na parede. De um lado, o fio sustenta uma pedra; do outro, liga alguns pregos que formam o desenho da constelação Cruzeiro do Sul, que só pode ser vista desde o Hemisfério Sul e que foi muito utilizada como recurso de orientação no contexto das Grandes Navegações. Emblemática na identificação geográfica do céu do Brasil, o sutil desenho dessa constelação evoca uma densa carga simbólica que remonta ao colonialismo europeu e aos traumas fundadores do que entendemos hoje como o nosso país. O cerne do trabalho se estrutura, assim, em torno da tensão que a qualquer momento pode ser desfeita, caso o barbante seja rompido pelo peso da pedra.
Folhas de látex suspensas no espaço revelam-se como uma espécie de gravura, na qual a matriz é a parede. Na série Testemunhar sem língua (2024), Bianca Madruga imprime os muros do seu ateliê e cria superfícies de contato com o mundo, dando contorno aos seus buracos. Aos suspender as obras no espaço, estuda seu comportamento diante do tempo e da gravidade, interessando-se por incorporar o movimento, as dobras e os eventuais danos como parte significativa do trabalho. Toda a pesquisa que vem desenvolvendo com esse material, na esteira de experimentações como as da alemã Eva Hesse (1936-1970) com o látex, é nutrida pelo diálogo que a artista estabelece com escritoras latino-americanas. Testemunhar sem língua, por exemplo, é o título de um ensaio em que a poeta argentina Tamara Kamenszain (1947-2021) comenta a também poeta argentina Alejandra Pizarnik (1936-1972). Já na superfície da obra Nancy II, podemos ler o título de um poema da cubana Nancy Morejón, Requiem para a mão esquerda, escrito por Madruga na parede com uma furadeira — que ela segurou com sua própria mão esquerda — e, em seguida, transferido para a grande folha de látex, na qual também se incorporam os restos de parede.
A respeito da mística da mão esquerda, Roland Barthes, em um ensaio sobre o artista Cy Twombly (1928-2011) intitulado “Cy Twombly ou ‘non multa sed multum’”, comenta que, ao produzir um traço gauche, o artista “desordena a moralidade do corpo”[5], e segue: “O fato de seus grafismos, suas composições, serem ‘gauches’, insere TW no círculo dos excluídos, dos marginais — onde se encontra, evidentemente, junto às crianças e aos enfermos: o ‘gauche’ (ou o ‘canhoto’) é uma espécie de cego: ele não vê bem a direção, o alcance de seus gestos; sua mão sozinha o guia, o desejo de sua mão, não sua aptidão instrumental”. O traço gauche, o desenho e a escrita da mão esquerda conferem à criação, assim, a dimensão simbólica de um convite à dissidência e ao embate diante da norma. O artista incorpora a falha e os rejeitos do mundo ao seu método e, com isso, salienta as fraturas do sistema ético e moral que o rege.
Já O espectro da queda (2023/2025), de Isadora Soares Belletti, realiza uma espécie de mágica através da qual um elemento passa instantaneamente da bidimensionalidade à tridimensionalidade. A instalação consiste em um vídeo em 16mm que registra penas caindo e, abaixo da projeção, um amontoado delas se forma no chão. Ao confabular sobre a experiência física e subjetiva da queda, a artista elabora sua própria versão da cena da queda de Ícaro. Belletti trabalha o peso e a leveza de modo densamente poético ao figurar o peso da tragédia — a queda — a partir de um material caracterizado por sua leveza: a pena.[6]
Integrar os restos
Ainda no ensaio sobre Cy Twombly, Barthes constata: “É no resíduo que se lê a verdade das coisas.”[7] Giram em torno desse entendimento os trabalhos de Carolina Cordeiro, da série Há uma observação a ser feita (2019/2024), e de Leila Danziger, da série Todos os dias de nossas vidas (2013/2014), além da instalação Pallaksch Pallaksch (2010/2025). Ao lidar com o descarte de documentos e vestígios da história, as artistas recortam, sobrepõem e rearranjam palavras e papéis, alcançando resultados de alta voltagem poética.
A colagens de Cordeiro reestruturam fichas catalográficas recolhidas em uma instituição pública da cidade de São Paulo. Após um mês de imersão no arquivo do Centro Cultural São Paulo (CCSP), a artista coletou todo o material que podia acessar ali e que já não tinha mais uso. Entendendo que o acúmulo de documentos descartáveis está ligado aos excessos da burocracia, Cordeiro realiza colagens que se apropriam do vocabulário protocolar dos documentos oficiais. A artista libera, assim, as palavras de suas rígidas estruturas para produzir composições de caráter lúdico e geométrico.
Já Danziger, ao encarar a árdua tarefa de desmontar o apartamento do pai após sua morte, se depara com uma vasta coleção de agendas em branco. A partir dessa experiência do luto, a artista dá início à escrita do livro de poemas Ano novo (2016) e à montagem dos trabalhos que reordenam as agendas, misturando os papéis do pai aos papéis da própria artista. Em certa altura do livro, aprendemos sobre o processo de feitura da série Todos os dias de nossas vidas:
Solto as páginas das agendas
libero os dias
embaralho semanas, meses, anos
modelo a massa do tempo que foi seu
— entre 1921 e 2011 —
um intervalo colossal
de eternidade humana.
Misturo minhas agendas
às suas extensões de branco
sobre branco
e reservas de futuros intactos
projetam-se
para além do fim dos tempos
que teve início
em trinta e um de dezembro
ou cinco de Tevet.
[Indiferente, a gata atravessa calendários
e adormece em maio de 1972.]
Como mencionei no início deste texto, Pallaksch Pallaksch é outra faceta da série Diários públicos, que Danziger produz desde 2002. O título da instalação repete a palavra empregada por Paul Celan (1920-1970) no poema escrito em homenagem a Friedrich Hölderlin (1770-1843), criador do termo enigmático que significaria tanto sim quanto não. A respeito do trabalho, Danziger relata: “É como se eu percebesse que tinha que integrar os restos de alguma forma”. E segue: “Duplicada, como aparece no poema de Celan, a palavra pallaksch me pareceu o título apropriado para uma instalação que surge de gestos repetitivos e que busca atribuir algum significado às ruínas do discurso atual que são os jornais”. Ao enfatizar os aspectos espaciais dos resíduos produzidos no processo de apagamento dos impressos, a artista opera uma modalidade de leitura corrosiva e extrativa, vivenciada em sua máxima materialidade. Danziger lê com o corpo inteiro.
(...)
Viesse
viesse uma pessoa
viesse uma pessoa ao mundo, hoje, com
a barba de luz dos
Patriarcas: ela poderia
se falasse ela deste
tempo, ela
poderia
apenas gaguejar e gaguejar
sempre –, sempre –
continuamente.
(Pallaksch. Pallaksch.)[8]
Transfigurar o inferno
No livro Nous sommes des animaux poétiques: l’art, les livres et la beauté par temps de crise (2023),[9] a antropóloga francesa Michèle Petit responde à máxima de Aristóteles e defende que, para além de animais políticos, somos animais poéticos porque “o utilitário nunca é suficiente para nós”. A literatura e a arte estariam, portanto, entre as formas que criamos para nos sintonizar com o mundo (Petit emprega a expressão s’accorder au monde, priorizando o sentido musical do termo accorder, uso não inteiramente traduzível ao português), pois o humano deteria essa incrível aptidão de “transfigurar o inferno”, sendo a arte “a vida transfigurada, o que impede a dissolução do ser.”[10]
Entendendo o uso da palavra inferno por Petit como um nome para as mais diversas formas do sofrimento humano — a morte, a opressão, a solidão, a desesperança —, a transfiguração da vida pela arte é a forma que o artista encontra para renovar os sentidos do mundo, ao mexer com as suas estruturas. Em depoimento dado no contexto de sua intervenção no pavilhão brasileiro da 57ª Bienal de Veneza, em 2017, Cinthia Marcelle dá o tom do que buscamos defender aqui. Ela declara que sua instalação representaria o momento político do Brasil (à época, Bolsonaro encampava sua agressiva campanha política, que o elegeu em 2018), sem perder o vínculo com a poesia e com a força da arte: “O pavilhão com certeza representa o momento atual da nossa situação no Brasil. Mas também preserva a poesia. Não do momento, mas a poesia e a força da arte."[11] Sua afirmação me leva a pensar no poema “The hard core of beauty”, escrito por William Carlos Williams e traduzido para o português como “O duro cerne da beleza”:
O mais esplêndido não é
a beleza, por profunda que seja,
mas a clássica tentativa
de beleza,
em meio ao charco.[12]
Ao falar de uma “clássica tentativa de beleza”, WCW aborda uma necessidade fundamental e humana. Insistimos em perseguir a beleza porque, sem ela, seria impossível a manutenção da vida. Tal beleza não se corresponde, evidentemente, a um paradigma limitado e estanque, mas justamente ao sentido do que é a poesia que apresentamos ao longo do texto. Porque, se a ordem é — esmoreça —, é vital desobedecê-la e insistir no contrário.
[1] Colocar ref do vídeo
[2] Itzhak Goldberg (org.), L'art du vide. Paris: CNRS Éditions, 2017, p. xx, tradução da autora.
[3] Depoimento da artista, dezembro de 2024.
[4] Idem.
[5] Roland Barthes, Cy Twombly. Paris: Éditions du Seuil, 2016, p. 45, tradução da autora
[6] É digna de nota a célebre pintura Paisagem com a queda de Ícaro (c. 1580), de Pieter Bruegel, o Velho. A insignificância conferida pelo pintor ao episódio trágico inspirou poemas de W. H. Auden (Musée des Beaux Arts) e William Carlos Williams (Landscape With the Fall of Icarus). É como se, em sua tela, Bruegel buscasse ressaltar a pequenez do drama humano em meio a outros eventos do mundo, figurando o personagem mitológico como uma nesga de perna e uma bagunça de penas que se afogam num canto qualquer da cena cotidiana retratada. Auden diz: “Sobre o sofrimento, eles nunca se enganaram,/ Os Grandes Mestres: como bem entendiam/ Sua posição humana; como ele ocorre/ Enquanto alguém está comendo, abrindo uma janela ou apenas caminhando a esmo.” W.H., Selected Poems. Nova York: Vintage Books, 1979, tradução da autora.
[7] Roland Barthes, Cy Twombly. Paris: Éditions du Seuil, 2016, p. 13, tradução da autora.
[8] Tradução de Leila Danziger do trecho final do poema “Tübingen, Janeiro”, escrito por Paul Celan em 1961.
[9] Lançado recentemente em português com o título Somos animais poéticos: a arte, os livros e a beleza em tempos de crise. São Paulo: Editora 34, 2024.
[10] Michèle Petit. Nous sommes des animaux poétiques: l’art, les livres et la beauté par temps de crise. Auxerre: Sciences Humaines Éditions, 2023, p. 19, tradução da autora.
[11] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=gMzbvzby43Q&ab e acessado em 30.01.2025.
[12] William Carlos Williams, “O duro cerne da beleza”, tradução por José Paulo Paes presente em Poemas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.