ABERTO 02: Alfred Domschke residency, designed by Vilanova Artigas | curated by: Claudia Moreira Salles, Kiki Mazzucchelli e Filipe Assis
A segunda edição de ABERTO, plataforma que integra arquitetura, arte, e design, ocupa um ícone da arquitetura paulista, a residência que João Batista Vilanova Artigas projetou em 1974 para a família do engenheiro Alfred Domschke, no Alto da Boa Vista. Uma das mais renomadas construções unifamiliares de Artigas, a casa nunca foi franqueada ao público, preserva todas as características do projeto original e foi restaurada especialmente para a realização do evento. Reunindo uma centena de obras, com ampla diversidade de estilos, temas, gerações e origens, ABERTO 02 antecipa o momento mais efervescente da cena artística paulistana – a abertura da Bienal de São Paulo, no início de setembro – e oferece uma forma inovadora de ver e apresentar arte. Dentre os destaques da atual seleção estão a tela Saída do Banho, de Degas; a pintura Torso e Fita Azul, de Suzanne Valadon; uma das versões da escultura However, de Maria Martins; e um Trepante de Lygia Clark. As obras de Degas e Valadon estabelecem uma interessante sintonia, pelo tema semelhante – o nu feminino –, pela proximidade entre os dois artistas e também por evidenciar a desigualdade de gênero, expressa no prestígio tardio da pintora, que só mais recentemente vêm obtendo prestígio equivalente a seus pares.
Selecionadas por seu ineditismo, excelência, ou relação com o ambiente que as acolhe, as obras interagem, estabelecendo diálogos ao mesmo tempo intensos e subjetivos, definidos em conjunto pelos três curadores, Claudia Moreira Salles, Kiki Mazzucchelli e Filipe Assis, o jovem idealizador do evento. Se na primeira versão da mostra, realizada em novembro de 2022 na única residência projetada por Oscar Niemeyer em São Paulo, a tônica histórica e a relação entre a obra do arquiteto de Brasília e trabalhos de matriz construtiva foram muito enfatizados, não há em ABERTO 02 um fio condutor mais geral. Predomina agora um conjunto variável de interrelações que potencializam encontros e iluminam a relação recíproca entre as obras e a arquitetura.
A casa traz características marcantes da obra de Artigas e do movimento que ele liderou, nomeado de Escola Paulista ou Brutalismo Paulista – como o uso do concreto armado aparente, a ênfase numa espacialidade contínua e o protagonismo das rampas, marca registrada do arquiteto, presentes, por exemplo, em um de seus projetos mais célebres, o prédio da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP). Mas a residência no Alto da Boa Vista possui algumas especificidades, como seu tamanho amplo (quase 700 metros), uma organização mais íntima e o uso bastante livre e ousado da cor, o que se vê logo à entrada, no vitral criado por ele. Sua conformação também se adequa melhor a uma exposição diversa como essa, com seus amplos espaços organizados em diferentes patamares, interconectados por recortes que permitem ver entre os volumes.
“Quisemos escolher obras que fizessem a pessoa sair de casa”, diz Filipe, ao enfatizar a qualidade dos trabalhos selecionados. “Ganhamos corpo tanto nas artes como no design, acrescenta ele. No segmento secundário, há uma ampla lista de atrações, nacionais e internacionais. Dentre esses nomes destacam-se Tarsila do Amaral, Sérgio Camargo, Olafur Eliasson, Lygia Pape e Cildo Meireles. A arte contemporânea sai reforçada, sobretudo porque essa segunda edição teve mais tempo de preparação. São cerca de 20 trabalhos comissionados, que interagem com o espaço e com outros trabalhos de forma cuidadosa. Mauro Restiffe e Ana Elisa Egreja voltam novamente à plataforma, fazendo registros da casa e dos banheiros intensamente coloridos criados por Artigas; Maria Klabin pintou especialmente naturezas-mortas de tangerinas, em referência às árvores frutíferas plantadas na calçada à frente, para usufruto de quem passasse por ali; Laura Vinci incorpora suas esculturas ao lago de carpas; e um barco de Davi de Jesus do Nascimento, rememorando sua tradição familiar de carranqueiros, navega na piscina, apenas para citar algumas das intervenções. Tal diversidade remete à frase clássica do arquiteto: “a casa é uma cidade; a cidade é uma casa”.
Logo na entrada da residência transformada temporariamente em museu, o visitante será recebido por um grande e valioso “arazzo”, tapeçaria que o italiano Alighiero Boetti realizou com o auxílio de mulheres afegãs. Diante dele um trabalho também ligado à arte têxtil, realizado especialmente por Leda Catunda, amiga das filhas de Domschke e que frequentou a casa durante a adolescência. Outros encontros interessantes foram estabelecidos ao longo do percurso, como aquele entre Adriana Varejão e Ivens Machado, artista de quem a pintora é admiradora confessa. Machado, aliás, tem uma centralidade na mostra, já que suas peças possuem algo familiar à obra do arquiteto. “Uma das primeiras obras que foi um consenso foi a do Ivens. O trabalho dele tem uma textura, uma certa brutalidade que conversa com o Artigas”, afirma Kiki. Não por acaso suas esculturas ocupam o centro da grande sala, com um pé direito de 5,20 metros e que é ainda ampliado pelo Shared hemisphere 1, lustre imponente de Olafur que reflete, e duplica, o ambiente.
Outro ambiente de destaque na mostra é a sala de estar, localizada no andar superior da casa. Organizado em torno da obra de Maria Martins – por sua vez inspirada pelo universo mitológico das lendas amazônicas – esse núcleo reúne um imponente conjunto de trabalhos nos quais se destaca a relação com a natureza: o grande Trepante de Clark, em que uma forma orgânica em metal é apoiada em toras de madeira; as paisagens do brasileiro Lucas Arruda e do sueco Andreas Eriksson; uma pintura de Jaider Esbell; uma seleção de obras em cerâmica da artista paraguaia Julia Isidrez e da japonesa Shoko Suzuki; entre outros.
As peças de design, em presença mais reforçada, se beneficiam do espaço arquitetônico privilegiado.ABERTO 02 marca uma série de lançamentos, de autoria da também curadora Claudia Moreira Salles, de Humberto Campana e, surpreendentemente do próprio Artigas. Serão disponibilizados, pela Etel, três versões de um aparador que o arquiteto desenhou para sua própria família, num jogo cromático e geométrico um tanto mondrianesco, que remete a outras obras da exposição, como as caixas coloridas de Sergio Sister.
Em termos documentais, há uma série de alusões à trajetória de Artigas, como um texto escrito pela Fundação Artigas sobre ele e a Escola Paulista, um conjunto de desenhos relacionados ao mobiliário que está sendo lançado e referências a outras conexões estabelecidas pelo arquiteto ao longo de sua trajetória, como o fato dele ter pertencido ao grupo Santa Helena, atuante em São Paulo dos anos 1930, junto a artistas como Volpi, assim que chegou em São Paulo vindo de sua Curitiba natal. Foi ali que conheceu Virginia, com quem viria a se casar. Destaca-se ainda a presença de trabalhos de Francisco Brennand, a quem comissionou dois projetos, ou um núcleo dedicado a artistas populares, que tem como ponto de partida a relação de amizade entre sua esposa Virginia e Djanira e que conta com a presença de artistas como Lorenzato, Nilda Neves e Heitor dos Prazeres.
A expectativa dos organizadores é repetir o sucesso da primeira edição do evento, que atraiu cerca de quatro mil visitantes, foi indicada pelos principais jornais como uma das melhores exposições de 2022, e teve seus ingressos esgotados rapidamente, o que levou à abertura de dois dias extras, com doação do valor dos ingressos para a Childhood Foundation. Afinal, além da curiosidade, porque são raras as oportunidades de visitar uma casa como essa, que normalmente não está acessível ao grande púbico, trata-se de uma oportunidade única de ver obras de arte em contexto íntimo, sem o ascetismo comum às galerias e feiras de arte.